Lei das Offshores: Instrumentos Judiciais para Contestação e Perspectivas

Lei das Offshores: Instrumentos Judiciais para Contestação e Perspectivas
Caminhos processuais disponíveis e fundamentos para questionamento judicial da Lei 14.754/2023
I. INTRODUÇÃO
Nos artigos anteriores desta série, examinamos o regime instituído pela Lei 14.754/2023 para tributação de lucros apurados por controladas no exterior. Demonstramos que a nova sistemática estabelece a incidência do Imposto de Renda sobre valores que permanecem no patrimônio da pessoa jurídica controlada. Não há qualquer disponibilização ao controlador pessoa física residente no Brasil.
Essa tributação viola frontalmente o conceito de disponibilidade econômica ou jurídica consolidado no artigo 43 do Código Tributário Nacional. Analisamos também as inconstitucionalidades materiais decorrentes dessa sistemática. A criação de fato gerador artificial e a violação ao princípio da capacidade contributiva representam vícios constitucionais graves.
Estamos em novembro de 2025. A primeira Declaração de Ajuste Anual sob o novo regime foi entregue em maio deste ano, relativa ao ano-calendário de 2024. Contribuintes brasileiros que controlam empresas no exterior já enfrentam concretamente as consequências da nova legislação.
Alguns recolheram o tributo sobre lucros não distribuídos. Outros foram autuados por não declararem ou por declararem de forma diversa da exigida pela Receita Federal. A questão deixou de ser meramente teórica. Tornou-se problema prático imediato que demanda resposta jurídica efetiva.
No presente artigo, examinaremos os instrumentos judiciais disponíveis para questionamento da Lei 14.754/2023. Analisaremos as vias processuais que o contribuinte pode utilizar para proteger seus direitos constitucionais. Discutiremos questões estratégicas relacionadas ao momento processual adequado.
Apresentaremos as perspectivas sobre o provimento jurisdicional, de forma cautelosa e equilibrada. Sem promessas de resultado, mas demonstrando que há fundamentos juridicamente sustentáveis para a contestação. O objetivo é oferecer ao leitor visão abrangente das alternativas processuais e dos fundamentos que amparam o questionamento judicial dessa exigência tributária.
II. SÍNTESE DOS FUNDAMENTOS CONSTITUCIONAIS
Antes de examinarmos os instrumentos processuais disponíveis, convém recapitular sinteticamente os fundamentos constitucionais que sustentam o questionamento judicial da Lei 14.754/2023. Esses fundamentos constituem a base sobre a qual se construirá a argumentação nas diversas vias judiciais.
O primeiro e mais fundamental argumento reside na violação ao conceito constitucional de renda. O artigo 43 do Código Tributário Nacional possui status de lei complementar. Vincula toda a legislação infraconstitucional. Define que o Imposto de Renda tem como fato gerador a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda.
A disponibilidade econômica caracteriza-se pelo efetivo ingresso de recursos no patrimônio do contribuinte. A disponibilidade jurídica configura-se quando o contribuinte adquire direito incondicional de exigir os valores. O lucro contábil apurado pela sociedade controlada, enquanto não distribuído, não representa nenhuma dessas modalidades.
Os valores permanecem no patrimônio autônomo da pessoa jurídica. A participação societária não transfere automaticamente ao sócio a titularidade dos lucros contabilizados. Essa distinção é fundamental e inafastável.
A Lei 14.754/2023 cria artificialmente um momento de tributação divorciado da ocorrência real do fato gerador. Estabelece a incidência sobre situação que não configura a materialidade constitucional do tributo. O contribuinte é compelido a reconhecer como renda própria valores que não ingressaram em seu patrimônio.
Valores sobre os quais não possui poder de disposição. Valores que podem nunca vir a integrar sua esfera jurídica. Trata-se do que a doutrina tributária denomina fato gerador ficto. A lei estabelece incidência sobre situação que não corresponde à realidade econômica subjacente à relação tributária.
A violação ao princípio da capacidade contributiva apresenta-se como consequência inevitável. O artigo 145, parágrafo primeiro, da Constituição Federal estabelece que os impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Capacidade contributiva pressupõe disponibilidade de recursos. Existência de riqueza passível de ser parcialmente transferida ao Estado.
Ao tributar lucros não disponibilizados, a lei ignora essa premissa. Exige que o contribuinte recolha imposto sobre valores que não estão sob seu domínio. O contribuinte que não dispõe de outras fontes vê-se compelido a promover a retirada de capital da controlada. Essa retirada ocorre especificamente para honrar obrigação tributária brasileira sobre renda que não tinha disponível.
Cria-se paradoxo insustentável. A lei força a ocorrência do fato gerador cuja ausência deveria impedir a própria tributação.
O Supremo Tribunal Federal estabeleceu precedente relevante ao julgar o Recurso Extraordinário 208.526. O Ministro Cezar Peluso destacou que a Constituição traz demarcação rígida dos contornos do tributo. Enfatizou que não é lícito tomar por renda qualquer pressuposto de fato que desencadeie outras competências.
O precedente estabelece que a personalidade jurídica da sociedade e a autonomia de seu patrimônio não podem ser desconsideradas para fins de tributação dos sócios. Enquanto os lucros permanecem no patrimônio social, não há que se falar em disponibilidade. A aplicabilidade desse entendimento ao caso da Lei 14.754/2023 é direta e inequívoca.
III. INSTRUMENTOS JUDICIAIS DISPONÍVEIS
A) Mandado de Segurança Preventivo
O mandado de segurança preventivo constitui o instrumento processual mais adequado para questionar a exigência instituída pela Lei 14.754/2023. Seu cabimento fundamenta-se na existência de direito líquido e certo ameaçado por ato de autoridade.
O contribuinte possui direito líquido e certo de não ser compelido a tributar lucros não distribuídos. Tal exigência viola o conceito constitucional de renda e o princípio da capacidade contributiva. Esses fundamentos configuram direito certo e determinado, amparado por normas constitucionais de eficácia plena.
O momento processual ideal para impetração é antes do vencimento da Declaração de Ajuste Anual do exercício seguinte. Para lucros apurados em 2025, o mandado de segurança deve ser impetrado antes de abril ou maio de 2026. Esse é o prazo normal para entrega da declaração. A autoridade coatora é o Delegado da Receita Federal da jurisdição fiscal do contribuinte. A competência é da Justiça Federal.
A principal vantagem reside na possibilidade de obter liminar que suspenda a exigibilidade do crédito tributário antes mesmo de qualquer desembolso. O contribuinte evita recolher valores sobre base de cálculo que entende inconstitucional. Evita também autuações fiscais decorrentes da não inclusão dos lucros não distribuídos na declaração.
A concessão de liminar depende da demonstração do fumus boni iuris e do periculum in mora. Os fundamentos de inconstitucionalidade demonstrados nos artigos anteriores configuram aparência do bom direito. O risco de desembolso irreparável sobre tributação inconstitucional caracteriza o perigo da demora.
A documentação necessária inclui demonstrações financeiras da controlada no exterior. Comprovação da participação societária. Elementos que evidenciem a ausência de distribuição de lucros. É essencial comprovar que os valores permanecem no patrimônio da sociedade controlada e que não houve qualquer disponibilização ao contribuinte pessoa física.
B) Mandado de Segurança Repressivo
O mandado de segurança repressivo é cabível quando o contribuinte já sofreu ato coator concreto. Configura-se tal situação quando a Receita Federal promove lançamento de ofício, aplica multa por não declarar os lucros não distribuídos, ou intima o contribuinte para prestar esclarecimentos sob ameaça de autuação.
O prazo para impetração é de 120 dias contados da ciência do ato coator. Esse prazo é decadencial. Transcorrido sem a impetração, opera-se a preclusão do direito de questionar o ato mediante mandado de segurança.
A principal limitação é que o ato lesivo já ocorreu. O contribuinte já foi autuado ou já sofreu a exigência fiscal. Embora seja possível obter liminar para suspender os efeitos do ato coator, a situação é menos vantajosa que o mandado de segurança preventivo. No preventivo, evita-se desde o início qualquer constrangimento. A autoridade coatora é aquela que praticou o ato impugnado, tipicamente o Auditor-Fiscal ou o Delegado da Receita Federal.
C) Ação Declaratória de Inexistência de Relação Jurídico-Tributária
A ação declaratória constitui alternativa ao mandado de segurança. Seu objetivo é obter declaração judicial de que não existe obrigação tributária de incluir na Declaração de Ajuste Anual os lucros não distribuídos de controladas no exterior. Trata-se de ação de conhecimento, de natureza declaratória.
A principal vantagem reside na possibilidade de sua propositura a qualquer momento. Não há necessidade de aguardar ameaça concreta ou ato coator específico. O contribuinte pode ajuizar a ação preventivamente, mesmo antes do vencimento da declaração do exercício corrente.
Sua limitação é a ausência de efeito suspensivo automático. A suspensão da exigibilidade do crédito tributário depende da obtenção de medida liminar. Essa liminar exige demonstração dos requisitos legais mediante decisão judicial específica. A competência é da Justiça Federal, e o polo passivo é ocupado pela União Federal.
D) Ação Anulatória de Débito Fiscal
A ação anulatória é cabível quando o crédito tributário já foi constituído definitivamente na esfera administrativa. Isso ocorre quando o contribuinte não apresentou impugnação administrativa. Ou quando apresentou e foi julgada improcedente, esgotando-se as instâncias recursais. O objetivo é anular o lançamento tributário e as multas dele decorrentes.
A principal limitação dessa via processual é a necessidade de garantia do juízo para suspender a exigibilidade do crédito tributário. O contribuinte deve efetuar depósito judicial do valor integral. Ou prestar fiança bancária. Ou contratar seguro-garantia. Trata-se de via menos vantajosa que o mandado de segurança preventivo, que pode obter liminar sem necessidade de garantia prévia.
A ação anulatória constitui alternativa subsidiária. Adequada para quem deixou transcorrer o prazo do mandado de segurança ou optou inicialmente pela via administrativa.
E) Considerações sobre Medidas Cautelares e Liminares
A obtenção de medida liminar constitui objetivo estratégico essencial em qualquer das vias processuais mencionadas. A liminar suspende a exigibilidade do crédito tributário. Permite que o contribuinte aguarde o julgamento de mérito sem sofrer constrangimentos da administração tributária. Os requisitos para concessão são o fumus boni iuris e o periculum in mora.
A aparência do bom direito decorre da demonstração das inconstitucionalidades materiais da Lei 14.754/2023. A violação ao conceito de disponibilidade, a criação de fato gerador artificial e a ofensa à capacidade contributiva constituem fundamentos robustos. O perigo da demora manifesta-se no risco de desembolso de valores substanciais sobre base de cálculo inconstitucional.
Esse desembolso representa prejuízo econômico de difícil reparação. A jurisprudência dos tribunais superiores tem sido receptiva à concessão de liminares em matéria tributária quando há inconstitucionalidade flagrante da exigência fiscal.
IV. CONCLUSÃO
Esta série de artigos examinou de forma abrangente o regime instituído pela Lei 14.754/2023 para tributação de lucros apurados por controladas no exterior.
No primeiro artigo, demonstramos que a nova sistemática estabelece a incidência do Imposto de Renda sobre valores que permanecem no patrimônio da pessoa jurídica controlada. Não há qualquer disponibilização ao controlador pessoa física. Essa tributação colide frontalmente com o conceito de disponibilidade econômica ou jurídica consolidado no artigo 43 do Código Tributário Nacional.
A Constituição Federal estabelece contornos rígidos para o exercício da competência tributária da União. O núcleo semântico mínimo do conceito de renda não pode ser manipulado. O legislador ordinário não pode alcançar manifestações de riqueza que não representam efetivo acréscimo patrimonial do contribuinte.
No segundo artigo, aprofundamos a análise das inconstitucionalidades materiais. Demonstramos que a lei cria fato gerador artificial incompatível com a Constituição Federal. A tributação de lucros meramente contábeis, antes de qualquer distribuição, representa ficção legal que não encontra respaldo no ordenamento jurídico.
A violação ao princípio da capacidade contributiva revela-se particularmente grave. O contribuinte pode ser compelido a recolher tributos sobre valores que não estão sob seu domínio. Examinamos cenários práticos concretos que evidenciam as distorções econômicas provocadas pela sistemática.
Contribuintes que tributam lucros posteriormente dissipados não recuperam valores desembolsados. Controladas que retêm lucros para reinvestimento são forçadas a distribuir capital apenas para viabilizar pagamento de tributo. Contribuintes que falecem antes de qualquer distribuição sujeitam seus herdeiros à dupla tributação.
No presente artigo, apresentamos os instrumentos judiciais disponíveis para questionar a exigência. O mandado de segurança preventivo constitui a via processual mais adequada. Permite evitar o desembolso e obter liminar suspensiva antes mesmo da entrega da Declaração de Ajuste Anual.
O mandado de segurança repressivo, a ação declaratória e a ação anulatória representam alternativas para diferentes situações processuais. A documentação adequada e a fundamentação jurídica robusta são essenciais para o êxito das medidas judiciais.
Os fundamentos constitucionais que amparam o questionamento judicial são sólidos. A violação ao conceito de disponibilidade, a criação de fato gerador artificial e a ofensa à capacidade contributiva constituem argumentos juridicamente sustentáveis. O precedente do Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário 208.526 estabelece que a personalidade jurídica da sociedade não pode ser desconsiderada para fins de tributação dos sócios.
Esses elementos configuram expectativa razoável de provimento jurisdicional favorável. Contudo, é necessário equilíbrio na avaliação.
O litígio tributário envolve custos significativos. Honorários advocatícios e custas processuais podem ser substanciais. Os processos judiciais tributários tramitam por anos até decisão definitiva. Não há garantia de resultado favorável, embora os fundamentos sejam robustos.
O Supremo Tribunal Federal pode eventualmente ter entendimento diverso quando analisar especificamente a Lei 14.754/2023. Cada contribuinte deve avaliar sua situação particular. Considerar o montante envolvido, sua capacidade de arcar com custos processuais e sua disposição para enfrentar litígio de longo prazo.
A assessoria jurídica especializada é indispensável. Permite análise adequada do caso concreto e definição da melhor estratégia processual.
A questão transcende aspectos técnicos de interpretação tributária. Situa-se no plano essencial dos limites constitucionais ao poder de tributar. A Constituição Federal estabelece garantias fundamentais aos contribuintes. Essas garantias não podem ser afastadas pelo legislador ordinário.
Ainda que sob o argumento de combate à evasão fiscal. Ainda que sob a alegação de alinhamento a práticas internacionais. O combate legítimo a estruturas offshore abusivas não autoriza a violação de princípios estruturantes do sistema tributário.
A disponibilidade econômica ou jurídica constitui requisito constitucional inafastável para a tributação da renda. Criar fato gerador artificial, dissociado da realidade econômica, representa excesso de competência tributária. Incompatível com o Estado Democrático de Direito.
A proteção judicial aos direitos fundamentais dos contribuintes constitui função essencial do Poder Judiciário. Os instrumentos processuais estão disponíveis. Os fundamentos constitucionais são sólidos. Cabe a cada contribuinte, devidamente assessorado, decidir se exercerá seu direito de questionar judicialmente exigência que entende inconstitucional.
A presente série de artigos buscou oferecer análise técnica abrangente. Permitir decisão informada e consciente. A preservação dos limites constitucionais ao poder de tributar não interessa apenas aos contribuintes individualmente. Interessa a toda a sociedade brasileira que se organiza sob o primado da Constituição Federal.
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Maurício Lindenmeyer Barbieri
Advogado e Contador. Sócio da Barbieri Advogados. Mestre em Direito pela UFRGS. Inscrito na Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart nº 50.159), Portugal (OAB Lisboa nº 64443L) e Brasil (OAB/RS, DF, SC, PR, SP). Contador inscrito no CRC-RS nº 106371/O. Membro da Associação de Juristas Brasil Alemanha.
