Variação Cambial na Lei 14.754/2023: A Tributação de uma Ficção Econômica
Variação Cambial na Lei 14.754/2023: A Tributação de uma Ficção Econômica
A nova lei das offshores criou uma distorção tributária sem precedentes ao equiparar oscilação monetária a ganho de capital, violando princípios constitucionais e a própria lógica do sistema tributário brasileiro
A Lei 14.754/2023, conhecida como “Lei das Offshores”, introduziu uma mudança radical na tributação de investimentos no exterior. Em seus artigos 3º, inciso II, e 7º, §1º, estabeleceu que a variação cambial de ativos adquiridos com recursos originalmente em moeda estrangeira passou a ser tributável como ganho de capital. Esta alteração representa não apenas uma ruptura com o regime anterior, mas uma distorção fundamental do conceito de renda no direito tributário brasileiro.
O Problema Central: Tributação de Renda Inexistente
Quando um investidor mantém recursos em moeda estrangeira e realiza aplicações nessa mesma moeda, não há efetivo acréscimo patrimonial decorrente da oscilação cambial. O valor do investimento permanece inalterado em sua moeda de origem – há apenas uma flutuação nominal quando convertido para reais.
Como ensina Luís Eduardo Schoueri, “do ponto de vista técnico contábil, é importante que se revele um rendimento no momento em que foi gerado, mesmo que não seja disponibilizado sob qualquer forma; o imposto de renda, por outro lado, não pode prescindir da disponibilidade, à luz do mandamento do art. 43 do Código Tributário Nacional.”
O artigo 43 do CTN é cristalino: o fato gerador do imposto de renda pressupõe “aquisição de disponibilidade econômica ou jurídica” de acréscimo patrimonial. Uma mera oscilação de conversão monetária não configura esse acréscimo. Como estabelece Hugo de Brito Machado, não há renda sem acréscimo patrimonial efetivo.
Exemplo Prático da Distorção
Considere um brasileiro que mantém USD 100.000 em conta no exterior desde 2020, recursos estes originalmente recebidos em dólares por serviços prestados no exterior. Se o dólar passou de R$ 5,00 para R$ 5,50, a Lei 14.754/2023 considera que houve “ganho” de R$ 50.000.
Mas o investidor continua com exatos USD 100.000 – não ficou um centavo mais rico em termos reais. A tributação incide sobre uma ilusão contábil, uma ficção criada pela conversão monetária.
Violação ao Princípio da Capacidade Contributiva
O princípio constitucional da capacidade contributiva (art. 145, §1º, CF) exige que a tributação reflita a real capacidade econômica do contribuinte. Ao tributar variações cambiais nominais de ativos mantidos em moeda estrangeira, a Lei 14.754/2023 impõe ônus tributário sobre uma riqueza fictícia.
Esta violação fica ainda mais evidente quando consideramos o cenário perverso criado pela lei: o contribuinte é obrigado a liquidar parte de seus investimentos apenas para pagar imposto sobre um “ganho” que nunca se materializou. A própria exigência tributária força a realização do suposto fato gerador – uma circularidade jurídica inadmissível que a doutrina e jurisprudência repudiam.
A Distinção Eliminada: O Fim da Racionalidade Tributária
Até 31 de dezembro de 2023, o ordenamento tributário brasileiro reconhecia uma distinção lógica estabelecida pela Medida Provisória 2.158-35/2001: recursos originalmente auferidos em moeda estrangeira e nela mantidos não geravam ganho de capital por variação cambial.
Esta diferenciação não era arbitrária – reconhecia que quando o custo de aquisição do ativo foi formado na moeda estrangeira, não há acréscimo patrimonial real decorrente de flutuações cambiais. A Lei 14.754/2023 aboliu essa distinção sensata, passando a tributar indiscriminadamente toda variação cambial positiva.
A Violação ao Princípio da Irretroatividade
O artigo 150, inciso III, da Constituição Federal veda expressamente a cobrança retroativa de tributos. A Lei 14.754/2023, promulgada em 12 de dezembro de 2023, pretende alcançar variações cambiais acumuladas ao longo de anos anteriores, tributando-as no momento da alienação como se fossem ganhos de capital.
Este aspecto é particularmente grave: investimentos realizados sob um regime jurídico que reconhecia a não-tributação de variações cambiais em moeda estrangeira agora são alcançados retroativamente pela nova lei. O STF, na ADI 2.588, já vedou tentativas similares de tributação retroativa de lucros no exterior.
O Precedente Empresarial: Uma Assimetria Reveladora
A irracionalidade da nova regra fica exposta quando comparamos com o tratamento dado às pessoas jurídicas. Empresas optantes pelo lucro real – que reconhecem receitas pelo regime de competência – podem diferir o reconhecimento da variação cambial até a efetiva realização.
Criou-se uma situação kafkiana: pessoas jurídicas em regime mais rigoroso podem postergar a tributação, enquanto pessoas físicas em regime de caixa são obrigadas a antecipar tributo sobre ganho não realizado.
Jurisprudência Contrária à Ficção Tributária
O Superior Tribunal de Justiça já estabeleceu que “não se deve confundir disponibilidade econômica com disponibilidade financeira. Enquanto esta última se refere à imediata ‘utilidade’ da renda, a disponibilidade econômica está atrelada ao simples acréscimo patrimonial, independentemente da existência de recursos financeiros” (REsp 1.505.010/DF).
Mesmo sob essa interpretação mais ampla, a variação cambial de ativos em moeda estrangeira não configura acréscimo patrimonial – é mera oscilação nominal sem substância econômica.
Implicações Práticas
A nova sistemática produz efeito devastador: contribuintes são compelidos a liquidar investimentos produtivos para gerar caixa destinada ao pagamento de imposto sobre ganho inexistente. Cria-se uma tributação em cascata – primeiro sobre a suposta variação cambial, depois sobre eventuais rendimentos reais – além de gerar insegurança jurídica absoluta, pois oscilações diárias de câmbio passam a gerar passivos tributários imprevisíveis.
Conclusão: A Inevitável Correção Judicial
A tributação da variação cambial de ativos adquiridos com recursos em moeda estrangeira pela Lei 14.754/2023 representa clara extrapolação dos limites constitucionais da competência tributária. Não se trata de combater evasão fiscal ou garantir isonomia, mas de criar artificialmente base tributável através de ficção jurídica.
O Poder Judiciário será chamado a restaurar a coerência do sistema tributário, reconhecendo que oscilação monetária não constitui renda. Os precedentes do STF sobre tributação fictícia e a sólida construção doutrinária sobre o conceito de renda apontam para a inevitável declaração de inconstitucionalidade desta exação.
Até que a correção judicial ocorra, contribuintes sofrerão com uma tributação que confunde forma com substância, aparência com realidade, oscilação com acréscimo – numa afronta aos princípios mais elementares do direito tributário civilizado.
Sobre o autor:
Maurício Lindenmeyer Barbieri é sócio da Barbieri Advogados. Advogado inscrito na OAB/RS, OAB/DF, OAB/SC, OAB/PR, OAB/SP, Ordem dos Advogados de Portugal (Lisboa) e Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart). Contador com registro no CRC-RS. Mestre em Direito pela UFRGS.

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