Valor de referência: como o fisco vai avaliar seu imóvel

28 de outubro de 2025

Compartilhe:

Introdução ao Valor de Referência: Conceito e Importância na Avaliação Imobiliária

Metodologia unificada da Reforma Tributária permite às administrações tributárias estimar o valor de mercado dos imóveis com impactos que transcendem a esfera federal

A Reforma Tributária introduziu mudança estrutural na avaliação de imóveis no Brasil. A Lei Complementar 214/2025, ao regulamentar os novos tributos sobre consumo (IBS e CBS), estabeleceu o conceito de “valor de referência” – estimativa padronizada do valor de mercado aplicável a cada imóvel brasileiro.

Essa inovação transcende mera atualização técnica. Diferentemente dos valores venais utilizados pelos municípios para cálculo do IPTU, o valor de referência será calculado nacionalmente, com metodologia unificada, e ficará disponível publicamente para cada imóvel registrado no Cadastro Imobiliário Brasileiro (CIB).

Para proprietários, investidores e profissionais do setor imobiliário, compreender esse novo sistema tornou-se essencial. O valor de referência influenciará não apenas a tributação federal, mas poderá redesenhar toda a estrutura tributária imobiliária nacional.

O conceito de valor de referência

O valor de referência constitui estimativa do valor de mercado dos imóveis, calculada conforme metodologia específica a ser definida pelas administrações tributárias, nos termos do artigo 256 da Lei Complementar 214/2025.

Trata-se de conceito inédito no direito tributário brasileiro, cujo objetivo é estabelecer parâmetro nacional e objetivo para avaliação imobiliária, superando décadas de critérios fragmentados que caracterizaram o setor.

É fundamental esclarecer que o valor de referência não constitui, tecnicamente, a base de cálculo do IBS ou da CBS nas operações imobiliárias. A base de cálculo permanece sendo o valor efetivamente declarado pelas partes na transação. O valor de referência desempenha função subsidiária – serve como meio de prova que as administrações tributárias poderão utilizar quando suspeitarem de subfaturamento ou declarações incompatíveis com a realidade de mercado.

Metodologia de apuração

A lei estabelece quatro pilares fundamentais para o cálculo do valor de referência.

Primeiro, a análise de preços praticados no mercado imobiliário, considerando transações efetivamente realizadas em condições normais de negociação.

Segundo, as informações compartilhadas entre União, estados, Distrito Federal e municípios, permitindo cruzamento de dados cadastrais e fiscais existentes nos diversos níveis federativos.

Terceiro, os dados fornecidos por serviços registrais e notariais que, através do Sistema Nacional de Gestão de Informações Territoriais (SINTER), conforme Instrução Normativa RFB 2.275/2025, compartilharão informações de todas as operações imobiliárias com as administrações tributárias.

Quarto, as características específicas de cada imóvel: localização, tipologia, finalidade, idade da construção, padrão construtivo e área construída, entre outras variáveis relevantes.

A integração desses elementos deve produzir estimativa tecnicamente fundamentada e alinhada ao valor real de mercado de cada unidade imobiliária.

Transparência e periodicidade

O valor de referência será divulgado publicamente no SINTER, conforme determina o parágrafo segundo do artigo 256 da Lei Complementar 214. A estimativa abrangerá todos os imóveis do Cadastro Imobiliário Brasileiro – urbanos e rurais, em todo o território nacional.

O CIB, originalmente criado em 2021 para imóveis rurais, expandiu-se com a Reforma Tributária para abranger imóveis urbanos, vinculando-se diretamente ao sistema tributário nacional, conforme analisado no primeiro artigo desta série.

A atualização será anual, garantindo que os valores acompanhem as oscilações do mercado imobiliário e as transformações urbanas que impactam a valorização das diferentes regiões. Essa periodicidade regular diferencia o valor de referência dos valores venais municipais, frequentemente mantidos sem atualização por períodos prolongados.

A combinação de transparência e atualização periódica estabelece sistema previsível, permitindo que contribuintes conheçam antecipadamente os parâmetros que as administrações tributárias poderão utilizar em suas análises.

Distinção entre valor de referência, valor venal e valor de mercado

A compreensão das diferenças entre esses três conceitos é fundamental para avaliar os impactos do novo sistema.

O valor de mercado representa o preço pelo qual um imóvel seria negociado em condições normais – entre partes independentes, bem informadas e sem pressões extraordinárias. Trata-se de conceito econômico que flutua constantemente conforme oferta e demanda.

O valor venal, utilizado pelos municípios para cálculo do IPTU, é definido por cada legislação municipal segundo critérios próprios, geralmente baseados em plantas de valores que consideram localização, metragem e padrão construtivo. Historicamente, apresenta defasagem em relação ao mercado, seja por desatualização das plantas municipais, seja por metodologias simplificadas.

O valor de referência posiciona-se como elemento intermediário: busca aproximar-se do valor de mercado através de metodologia técnica robusta, mantendo natureza de estimativa calculada por critérios objetivos e aplicável uniformemente a todos os imóveis cadastrados.

Embora juridicamente distintos, a tendência natural aponta para convergência progressiva entre valor de referência federal e valores venais municipais, especialmente após os municípios passarem a ter acesso facilitado às estimativas produzidas nacionalmente.

Utilização no arbitramento tributário

O parágrafo primeiro do artigo 256 estabelece que o valor de referência poderá ser utilizado como meio de prova nos casos de arbitramento do valor da operação, em conjunto com as demais características da transação.

O arbitramento constitui procedimento pelo qual a administração tributária, verificando discrepância entre o valor declarado e o valor real da operação, determina este valor mediante critérios técnicos.

A previsão legal estabelece cuidadosamente que o valor de referência funciona como meio de prova, não como presunção absoluta. A fiscalização deverá fundamentar adequadamente eventual divergência, e o contribuinte mantém direito ao contraditório e à ampla defesa.

Diversas situações legitimam valores inferiores ao referencial: necessidade urgente de alienação, defeitos construtivos não aparentes, condições especiais de pagamento, transações entre partes relacionadas com objetivos não comerciais, ou características particulares não captadas pela metodologia geral.

O desafio reside em equilibrar o controle fiscal legítimo sobre operações simuladas com o respeito à autonomia negocial das partes.

Direito de impugnação

Aspecto fundamental está previsto no parágrafo terceiro do artigo 256: o valor de referência poderá ser impugnado através de procedimento específico, nos termos do regulamento.

Essa garantia equilibra o poder avaliativo das administrações tributárias com a proteção dos direitos do contribuinte. Embora o regulamento específico ainda não tenha sido editado, a previsão legal assegura via administrativa para questionamento das estimativas.

As impugnações poderão fundamentar-se em diversos argumentos: inadequação metodológica ao caso concreto, desconsideração de características particulares que impactam o valor, erros nos dados cadastrais utilizados, ou discrepância entre a estimativa e os preços efetivamente praticados para imóveis similares.

A relevância desse direito amplifica-se considerando que o valor de referência, uma vez publicado, permanecerá acessível e poderá influenciar não apenas a fiscalização federal, mas também decisões municipais sobre atualização de valores venais.

Efeitos sobre a tributação municipal e estadual

Embora instituído no contexto da Reforma Tributária federal, o valor de referência produzirá efeitos que transcendem o IBS e a CBS.

A Emenda Constitucional 132/2023 alterou o artigo 156 da Constituição Federal, permitindo que o Poder Executivo Municipal atualize a base de cálculo do IPTU por decreto, desde que observe critérios estabelecidos pela Câmara Municipal. Essa facilitação processual, combinada com a disponibilidade de valores de referência tecnicamente apurados, cria ambiente propício para convergência entre as avaliações federal e municipal.

As consequências práticas incluem potencial elevação dos valores venais em municípios com significativa defasagem, resultando em aumento do IPTU independentemente de alteração de alíquotas. O mesmo raciocínio aplica-se ao ITBI e ao ITCMD estadual, que utilizam valores venais ou de mercado como base de cálculo.

Essa dinâmica será analisada detalhadamente no próximo artigo desta série.

Desafios de implementação

A operacionalização do sistema de valor de referência enfrenta desafios técnicos e jurídicos significativos.

No aspecto técnico, desenvolver metodologia única capaz de avaliar adequadamente a diversidade do patrimônio imobiliário brasileiro constitui tarefa complexa. Imóveis urbanos metropolitanos, propriedades rurais, construções históricas e habitações populares apresentam características distintas que desafiam modelos padronizados.

A qualidade e confiabilidade das informações fornecidas por prefeituras, cartórios e demais fontes influenciarão decisivamente a precisão das estimativas.

No aspecto jurídico, persistem questionamentos sobre os limites da delegação regulamentar, considerando que elementos essenciais da obrigação tributária devem estar definidos em lei, conforme jurisprudência consolidada do STF e STJ.

A experiência internacional demonstra que sistemas de avaliação massiva, independentemente de sua sofisticação técnica, geram volume significativo de contestações, exigindo estrutura administrativa adequada para processamento de impugnações.

Recomendações para proprietários e investidores

Proprietários devem adotar postura preventiva e estruturada diante do novo sistema.

Primeiramente, acompanhar a divulgação dos valores de referência no SINTER, verificando as estimativas atribuídas a cada imóvel de sua propriedade.

Em caso de discrepância significativa entre o valor de referência e a avaliação do proprietário sobre o valor real do imóvel, recomenda-se reunir documentação comprobatória: laudos de avaliação, análises comparativas de mercado, registros fotográficos do estado de conservação, documentos que comprovem características particulares não captadas pela avaliação massiva.

Para operações programadas após 2027, considerar o valor de referência no planejamento tributário, antecipando eventual necessidade de justificação perante a fiscalização.

Investidores com múltiplos imóveis devem atentar especialmente aos impactos cumulativos, considerando tanto a tributação federal quanto possíveis revisões nos valores venais municipais.

A assessoria jurídica especializada revela-se particularmente recomendável em três situações: impugnação de valor de referência considerado excessivo, defesa em procedimento de arbitramento fiscal, e planejamento tributário para operações de valores relevantes.

Conclusão

O valor de referência instituído pela Lei Complementar 214/2025 representa transformação estrutural na forma como o Estado brasileiro avalia o patrimônio imobiliário. A metodologia nacional unificada e transparente promete reduzir assimetrias informacionais e conferir maior previsibilidade às relações tributárias.

Os benefícios potenciais incluem redução de litígios sobre subfaturamento, maior segurança jurídica nas transações e profissionalização do mercado imobiliário. Os riscos concentram-se na possibilidade de estimativas desalinhadas com a realidade específica de determinados imóveis e no uso inadequado como presunção de subfaturamento.

O equilíbrio do sistema dependerá da qualidade técnica da metodologia a ser regulamentada, da efetividade dos mecanismos de impugnação e da atuação responsável das administrações tributárias.

Proprietários devidamente informados e assessorados estarão em condições adequadas para exercer seus direitos e minimizar consequências adversas decorrentes da nova sistemática de avaliação imobiliária.

No próximo artigo desta série, analisaremos especificamente como o valor de referência do CIB pode influenciar a tributação municipal, examinando a relação entre este novo conceito e os valores venais utilizados para cálculo do IPTU, ITBI e ITCMD, bem como os limites constitucionais aplicáveis.


Sobre o autor

Maurício Lindenmeyer Barbieri é sócio da Barbieri Advogados, Mestre em Direito pela UFRGS, inscrito na Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart), Portugal (OA Lisboa) e Brasil (OAB/RS, DF, SC, PR, SP). Professor universitário, exerceu a docência na PUCRS e UniRitter. Autor de obras especializadas em Direito Processual Civil e Trabalhista.


Artigos da série “CIB e a nova tributação imobiliária”:

  • Artigo 1: CIB: o que é o “CPF dos imóveis” e como ele afeta proprietários

  • Artigo 2: Valor de referência: como o fisco vai avaliar seu imóvel (este artigo)

  • Próximo: CIB e tributos municipais: a convergência inevitável?