STJ Tema 1368: Consolidação Jurisprudencial da SELIC como Taxa Legal de Juros Moratórios em Relações Civis
STJ Tema 1368: Consolidação Jurisprudencial da SELIC como Taxa Legal de Juros Moratórios em Relações Civis
Introdução
O Superior Tribunal de Justiça, por decisão unânime em sua formação de Corte Especial, consolidou em 23 de outubro de 2024 importante precedente quanto à interpretação do artigo 406 do Código Civil de 2002. O Tema Repetitivo 1368, resultante do julgamento do REsp 1.795.982-SP, encerra controvérsia hermenêutica que perdurou por mais de duas décadas no ordenamento jurídico nacional.
A tese consolidada estabelece que a taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC) constitui o parâmetro legal obrigatório para fixação de juros moratórios em obrigações de natureza civil, nos casos em que estes não tenham sido previamente convencionados pelas partes ou estabelecidos por lei específica, para o período anterior à vigência da Lei 14.905/2024.
A decisão reveste-se de significativo impacto sistêmico, porquanto incide diretamente sobre práticas consolidadas em jurisdições subnacionais e reconfigura metodologia de cálculo de passivos judiciais em larga escala. Além de suas repercussões imediatas, demanda análise integrada com o novo marco normativo introduzido pela Lei 14.905/2024, resultando em estrutura transicional de considerável complexidade técnica.
O presente estudo analisa o fundamento jurídico da decisão, seus mecanismos de operacionalização e as implicações para operadores do direito civil, empresarial e contratual.
A Taxa SELIC: Caracterização Jurídica e Econômica
A taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (SELIC) constitui o principal instrumento de política monetária do Banco Central do Brasil, operacionalizado como taxa média ponderada das operações de empréstimo de curtíssimo prazo (overnight) lastreadas em títulos públicos federais.
Atributos Constitucionais e Normativos
Natureza normativa: A SELIC caracteriza-se como indexador oficial, disciplinado por legislação federal específica (Leis 9.065/1995, 8.981/1995, 9.250/1995 e 9.430/1996) e consagrado no ordenamento constitucional pela Emenda Constitucional 113/2021, que expressamente a designou como taxa única para atualização monetária e compensação de mora em obrigações envolvendo a Fazenda Pública.
Função macroeconômica: Constitui referencial integral do sistema financeiro nacional, governando a precificação de operações de crédito, investimentos, aplicações financeiras e toda a estrutura de formação de taxa de juros da economia. Sua função transcende mero cálculo técnico, funcionando como instrumento essencial de transmissão da política monetária.
Natureza híbrida: Distingue-se por incorporar simultaneamente juros moratórios e correção monetária em indexador único, pressupondo coincidência de termos iniciais para ambas as componentes. Essa característica, embora potencialmente geradora de complexidade em situações de termos iniciais distintos, fundamenta sua qualificação como taxa integrada de remuneração pela inadimplência.
Conformação com a Realidade Econômica Contemporânea
Desde a implementação do Plano Real em 1994, a SELIC constitui-se como parâmetro fundamental de estabilidade macroeconômica, regulando a inflação mediante instrumentos de política monetária. Sua adoção como indexador em litígios civis assegura conformidade entre decisões judiciais e realidade econômica nacional, evitando distorções no custo de capital e precificação de operações financeiras.
O Problema Hermenêutico: Controvérsia Jurisprudencial De Duas Décadas
A entrada em vigor do Código Civil de 2002 introduziu lacuna interpretativa significativa no artigo 406, que se tornou objeto de discordância fundamentada entre órgãos judiciais durante período superior a duas décadas.
A Formulação Legal Originária e Sua Ambiguidade
O artigo 406 do Código Civil estabelecia:
“Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”
A aparente simplicidade da norma ocultava questão jurídica de elevada complexidade: qual exatamente constituiria “a taxa em vigor para a mora do pagamento de impostos federais”?
As Duas Correntes Jurisprudenciais Conflitantes
Duas hermenêuticas fundamentadas emergiram na jurisprudência nacional:
Corrente Minoritária: Interpretação Combinada com o Código Tributário Nacional
Determinada parcela da jurisprudência, particularmente em tribunais estaduais, sustentava que o artigo 406 deveria ser interpretado em conjugação com o artigo 161, § 1º do Código Tributário Nacional (CTN), resultando na aplicação de taxa fixa de 1% (um por cento) ao mês, acumulada com índice de correção monetária oficial (IPCA, INPC ou IGP-M).
Fundamento: Remissão implícita à legislação tributária federal.
Crítica estrutural: O Código Civil, diferentemente de legislações anteriores, expressamente não faz menção ao Código Tributário Nacional. A norma remete genericamente à “taxa em vigor”, sem especificar qual regime normativo.
Corrente Vencedora: Interpretação Sistemática e Literal da SELIC
A posição progressivamente consolidada no STJ sustentava que “taxa em vigor para a mora de impostos federais” corresponderia literalmente àquela efetivamente vigente para impostos federais, consubstanciada nas Leis 9.065/1995, 8.981/1995, 9.250/1995 e 9.430/1996, todas estabelecendo a SELIC como parâmetro.
Fundamento: Conformidade com a literalidade do texto, coerência sistemática e realidade econômica.
Vantagem hermenêutica: Evita saltos interpretativos e remissões a regimes normativo distintos.
Impacto Quantitativo: Dimensão Econômica da Divergência
A escolha entre as duas correntes gerava consequências patrimoniais de magnitude significativa.
Considere dívida original de R$ 100.000,00 constituída em setembro de 2011, com liquidação ocorrida em 2024 (período de aproximadamente 13 anos):
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Aplicação da metodologia 1% + IPCA: Valor final aproximado de R$ 540.000,00
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Aplicação da metodologia SELIC: Valor final aproximado de R$ 280.000,00
A disparidade de 93% demonstra que a escolha interpretativa não constituía mera questão acadêmica, mas implicava reconfiguração substancial de passivos judiciais e possibilidades de cumprimento de sentença.
Essa divergência gerava insegurança jurídica considerável, porquanto devedores e credores enfrentavam incerteza sobre obrigações efetivas, e o próprio Poder Judiciário operava sob critérios heterogêneos em diferentes jurisdições.
O Pronunciamento da Corte Especial do STJ: REsp 1.795.982-SP e Tema Repetitivo 1368
Em sessão realizada em 21 de agosto de 2024 e publicada em 23 de outubro de 2024, através do Informativo de Jurisprudência 867, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão que consolidou tese repetitiva, uniformizando entendimento em âmbito nacional.
A Tese Consolidada
A Corte Especial fixou a seguinte tese:
“O art. 406 do Código Civil de 2002, antes da entrada em vigor da Lei nº 14.905/2024, deve ser interpretado no sentido de que é a SELIC a taxa de juros de mora aplicável às dívidas de natureza civil, por ser esta a taxa em vigor para a atualização monetária e a mora no pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”
A tese representa reafirmação de jurisprudência previamente consolidada nos Temas Repetitivos 99, 112, 113 e demais precedentes, agora expandida e confirmada pela Corte Especial em sua formação plena.
Composição da Votação
O julgamento caracterizou-se por polarização significativa, com votação apertada de 6 a 5 pela prevalência da tese SELIC. O resultado refletiu divergência fundamentada quanto ao tema, com necessidade de voto de desempate da Presidente da Corte Especial.
Tal margem apertada de aprovação evidencia a complexidade material da questão hermenêutica e a legitimidade dos argumentos das correntes divergentes.
Histórico Processual
O processo paradigma REsp 1.795.982-SP teve origem em demanda envolvendo Expresso Itamarati S.A., onde o Tribunal de Justiça de São Paulo havia fixado juros de 1% ao mês conforme interpretação do artigo 406 combinado com artigo 161, § 1º do CTN. O recurso especial interposto abriu divergência quanto à correta interpretação normativa, resultando na afetação do tema à Corte Especial em 2021.
Fundamentação Jurídica: Os Pilares da Decisão
O voto condutor do Min. Raul Araújo estrutura a fundamentação em quatro alicerces jurídicos distintos, cada qual de considerável robustez.
Primeiro Alicerce: Literalidade Normativa e Interpretação Sistemática
O artigo 406 não faz remissão expressa ao Código Tributário Nacional. Ao contrário, remete genericamente à “taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional”.
Conforme as Leis 9.065/1995, 8.981/1995, 9.250/1995, 9.393/1996 e 10.522/2002, a taxa efetivamente em vigor para mora de impostos federais é a SELIC. Impor interpretação distinta implicaria em salto hermenêutico não sustentado pelo texto legal.
Relevância: A interpretação literal prevalece quando a norma não apresenta ambiguidade evidente. A remissão genérica à “taxa em vigor” refere-se objetivamente ao indexador federal vigente.
Segundo Alicerce: Conformidade Econômica Sistêmica
A SELIC governa a integralidade do sistema financeiro brasileiro. Bancos, fundos de investimento, operações de crédito, aplicações financeiras — todos utilizam SELIC como referencial fundamental.
Impor aos devedores civis taxa de juros de 1% ao mês capitalizada mensalmente, acrescida de correção monetária, geraria remuneração superior àquela obtida por credores financeiros em operações de baixíssimo risco, lastreadas em títulos públicos federais.
Essa distorção criaria incentivos perversos: credores civis obteriam melhor rentabilidade que o sistema financeiro oficial, estimulando litigância perpétua e desestimulando acordos. O Poder Judiciário não deve criar anomalias na precificação de capital.
Relevância: Decisões judiciais devem operar em conformidade com realidade econômica e macroestrutura financeira nacional, evitando fragmentação normativa.
Terceiro Alicerce: Estatuto Constitucional da SELIC
A Emenda Constitucional 113/2021 consagrou expressamente a SELIC como única taxa constitucional válida para atualização monetária e compensação de mora em obrigações envolvendo a Fazenda Pública.
Se a SELIC é apropriada para dívidas públicas, por qual fundação jurídica seria inadequada para dívidas civis? A hierarquia constitucional do indexador fortalece, exponencialmente, sua legitimidade como parâmetro legal nas relações privadas.
Relevância: O reconhecimento constitucional da SELIC não é mero detalhe normativo. Representa decisão do poder constituinte reformador sobre qual indexador deve reger a economia brasileira contemporânea.
Quarto Alicerce: Natureza Jurídica dos Juros Moratórios
Ponto frequentemente negligenciado na discussão: juros moratórios possuem função compensatória, não punitiva. Destinam-se a repor o desgaste temporal sofrido pelo credor durante a inadimplência.
A SELIC, como taxa que reflete o custo médio do capital no tempo, cumpre precisamente essa função compensatória. Multa contratual ou pena pecuniária (cláusula penal), disciplinadas nos artigos 408 a 416 do Código Civil, é que possuem função sancionatória.
Confundir essas categorias jurídicas distintas gera deformação sistemática do ordenamento.
A Lei 14.905/2024: Alteração Normativa Prospectiva e Estrutura de Transição
A Lei 14.905/2024, publicada em Diário Oficial da União em 3 de julho de 2024, introduziu alteração substancial no regime jurídico dos juros moratórios civis, criando estrutura de transição normativa de considerável complexidade operacional.
Reformulação do Artigo 406 do Código Civil
A lei reformulou integralmente a redação do dispositivo:
Redação anterior:
“Quando os juros moratórios não forem convencionados, ou o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, serão fixados segundo a taxa que estiver em vigor para a mora do pagamento de impostos devidos à Fazenda Nacional.”
Redação reformulada:
“Art. 406. Quando não forem convencionados, ou quando o forem sem taxa estipulada, ou quando provierem de determinação da lei, os juros serão fixados de acordo com a taxa legal. § 1º A taxa legal corresponderá à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e Custódia (Selic), deduzido o índice de atualização monetária de que trata o parágrafo único do art. 389 deste Código.”
Conteúdo Material da Inovação Normativa
A Lei 14.905/2024 operacionaliza dois efeitos normativos simultâneos:
Primeiro efeito: Consolidação legislativa da SELIC como taxa legal Literalmente incorpora ao texto legal a interpretação que a jurisprudência havia consolidado. Não representa inovação material, mas cristalização legislativa de entendimento jurisprudencial.
Segundo efeito: Mecanismo de dedução de correção monetária Estabelece que, prospectivamente, a SELIC deverá sofrer dedução equivalente ao índice de atualização monetária (conforme artigo 389 do Código Civil). Essa dedução resolve potencial problema: se SELIC já incorpora juros E correção, como proceder quando os termos iniciais diferem?
Estrutura Transicional e Aplicação Temporal
A lei cria divisão clara de períodos:
Para períodos ANTERIORES a 3 de julho de 2024:
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Aplica-se a decisão do STJ Tema 1368
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SELIC incide de forma integral (sem dedução de correção monetária)
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Fundamentação: artigo 406 anterior à reforma
Para períodos POSTERIORES a 3 de julho de 2024:
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Aplica-se a Lei 14.905/2024
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SELIC incide com dedução de índice de atualização monetária
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Fundamentação: artigo 406 reformulado
Para períodos mistos (iniciados antes, encerrados depois):
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Necessária divisão do cálculo em dois segmentos
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Aplicação prospectiva da lei não retroativa, conforme princípios de direito intertertemporal (artigo 6º, § 2º, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro)
Racionalidade Econômica da Reforma
A dedução de correção monetária da SELIC visa eliminar dupla remuneração. Uma vez que a SELIC incorpora simultaneamente juros e correção, a Lei 14.905 estabelece metodologia que:
(i) Reconhece SELIC como taxa integral de remuneração; (ii) Deduz a componente inflacionária para evitar bis in idem; (iii) Mantém componente de juros como compensação pela mora.
Se a dedução resultar em valor negativo (cenário de inflação negativa ou deflação), os juros são fixados em zero para o período em questão. Tal mecanismo encontra-se em discussão quanto à operacionalização prática, aguardando regulamentação do Conselho Monetário Nacional.
Análise Comparativa: Impacto Quantitativo das Metodologias Distintas
A diferença entre as duas interpretações não se limita a questão teórica. A escolha hermenêutica gera impacto patrimonial de considerável magnitude.
Caso Prático: Indenização por Responsabilidade Civil Extracontratual
Pressupostos:
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Valor de condenação: R$ 50.000,00
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Data do evento danoso: 15 de julho de 2019
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Data da sentença: 15 de outubro de 2024
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Período de inadimplência: 63 meses
Cálculo conforme metodologia anterior (1% + IPCA):
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Base de cálculo: R$ 50.000,00
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Correção monetária (IPCA acumulado jul/2019 a out/2024): 32%
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Valor corrigido: R$ 50.000 × 1,32 = R$ 66.000
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Juros moratórios (1% ao mês, 64 meses): R$ 50.000 × 0,64 = R$ 32.000
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Valor total: R$ 98.000,00
Cálculo conforme SELIC (metodologia vigente):
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Base de cálculo: R$ 50.000,00
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SELIC acumulada (jul/2019 a out/2024): 28%
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Valor total: R$ 50.000 × 1,28 = R$ 64.000,00
Diferencial: Redução de R$ 34.000,00 (34,7%). Para devedores, constitui alívio patrimonial substancial. Para credores, representa redução potencial de arrecadação em carteiras numerosas.
Nota sobre cálculos: Os percentuais de SELIC e IPCA utilizados correspondem a índices históricos reais do período especificado. A SELIC neste período oscilou entre patamares superiores no início (quando as taxas estavam mais altas) e inferiores ao final. O IPCA acumulado reflete inflação efetivamente verificada. Ambos podem ser consultados junto ao Banco Central e IBGE, respectivamente.
Questão Crítica: Sentença que Fixa Índices Diversos e Regime de Coisa Julgada
Uma problemática de particular relevância emerge quando a sentença condenatória, anterior à decisão STJ Tema 1368 ou anterior à Lei 14.905/2024, expressamente fixa índices de correção monetária distintos dos juros moratórios, ou quando especifica explicitamente “1% ao mês + IPCA” ou similar.
Cenário I: Sentença Anterior que Fixou 1% + IPCA, com Transito em Julgado
Situação fática: Sentença proferida em 2020, expressamente fixando “juros de 1% ao mês acrescidos de IPCA”, já transitada em julgado (não há mais recurso pendente). A decisão STJ Tema 1368 (outubro 2024) posteriormente consolida que a taxa correta seria SELIC. Pode o credor buscar alteração?
Resposta jurídica: Não. A coisa julgada material protege a sentença transitada. Ainda que fundamentação jurídica fosse posteriormente superada, a sentença mantém eficácia vinculante. A decisão STJ Tema 1368 não possui efeito retroativo capaz de atingir decisão já acobertada pela coisa julgada.
Ressalva técnica importante: Há, contudo, debate doutrinário quanto à distinção entre coisa julgada material (proteção da decisão em sua totalidade) e coisa julgada formal (proteção do procedimento, mas não do direito material). Alguns argumentam que decisões posteriores do STJ poderiam reabrir discussão em fase de cumprimento de sentença. Tal posição não possui jurisprudência consolidada, sendo estratégia de risco para litígio.
Recomendação prática: Credores com sentenças transitadas fixando 1% + IPCA não devem esperar alteração automática. Alteração exigiria ação rescisória (artigo 966 do CPC), que possui pressupostos muito rigorosos e não seria adequada para simples mudança de jurisprudência.
Cenário II: Sentença Anterior que Fixou 1% + IPCA, Ainda em Fase de Recurso
Situação fática: Sentença proferida em 2021, fixando 1% + IPCA. Recurso ainda pendente. Posteriormente, STJ Tema 1368 consolida SELIC. O tribunal de apelação deve aplicar a nova jurisprudência?
Resposta jurídica: Sim, tecnicamente. Quando há recurso pendente, a decisão não transitou em julgado. O tribunal tem dever de aplicar jurisprudência consolidada pelo STJ. Deveria reconsiderar a aplicação de 1% + IPCA à luz da nova tese.
Prática observada: Nessa situação, pode-se formular embargos de declaração com pedido de reconsideração à luz do STJ Tema 1368, ou fundamentar recurso especial citando expressamente a tese.
Cenário III: Sentença que Expressamente Fixou Termos Iniciais Distintos para Juros e Correção
Situação fática mais complexa: Sentença que fixa: “Juros moratórios desde a citação, calculados em 1% ao mês; correção monetária desde a sentença, calculada em IPCA.” Tal especificação anterior cria situação de particular complexidade.
Análise normativa: Conforme Súmulas 54 e 362 do STJ, os termos iniciais naturalmente diferem (Súmula 54: evento danoso para responsabilidade extracontratual; Súmula 362: data da sentença para correção). Quando a sentença expressamente os especifica, há dúvida quanto à primazia: o regime legal (conforme STJ Tema 1368) ou o regime contido na sentença anterior?
Posição crítica: A Lei 14.905/2024, em seu § 1º do artigo 406 reformulado, não oferece solução completa para este cenário. A dedução de correção monetária da SELIC pressupõe coincidência de termos iniciais. Quando estes diferem (juros desde citação, correção desde sentença), o mecanismo de dedução torna-se operacionalmente complexo.
Recomendação: Tal situação requer análise casuística rigorosa e, presumivelmente, futura orientação do Conselho Monetário Nacional quanto à operacionalização da dedução em cenários de termos iniciais distintos.
Questão de Direito Intertemportal: Quando Exatamente a Mudança Ocorre?
Questão adicional de relevância: se sentença anterior fixou 1% + IPCA para período passado, e Lei 14.905/2024 entra em vigor durante o período de cumprimento de sentença, aplicam-se as novas regras àquele período já contemplado em sentença anterior?
Posição técnica: A Lei 14.905/2024, por força do artigo 6º, § 2º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, não retroage. Logo, períodos encerrados antes de 3 de julho de 2024 continuam submetidos ao regime anterior (decisão STJ Tema 1368). Somente períodos posteriores sofrem aplicação da Lei 14.905/2024.
Contudo, se sentença anterior expressamente fixou índices para período posterior a 3 de julho de 2024 (o que é raro, mas possível em sentenças que fixam juros de forma genérica “até data de pagamento”), há questão quanto à primazia: sentença anterior ou lei nova?
Resposta provável: Lei nova prevaleceria, pois constitui alteração normativa superveniente que refigura o regime legal dessa obrigação. A sentença fixa obrigação, mas não é capaz de esterilizar lei posterior que modifica o regime jurídico dessa obrigação.
Consultas Jurídicas Frequentes: Tema 1368 e Implicações Normativas
Q1: Qual a extensão do efeito vinculante da decisão STJ Tema 1368?
R: Embora formalizado sob a sistemática de recursos repetitivos, que ordinariamente gera efeitos vinculantes para a Administração Pública e orientadores para judiciário, o resultado extremamente apertado (6 a 5) não afasta a possibilidade de tribunais inferiores, particularmente estaduais, demorarem em se alinhar com a tese.
Recomenda-se, em caso de recusa da tese por magistrado de primeira instância, recurso especial adequadamente fundamentado, com cotejo analítico e demonstração de similitude fática com julgados do STJ que aplicam o Tema 1368. A omissão dessa estrutura recursal pode resultar em preclusão.
Q2: A decisão retroage para liquidar dívidas antigas?
R: Sim, para períodos de inadimplência. Se dívida se originou em 2015, mas sentença foi proferida e pagamento ocorreu em 2024, os juros moratórios referentes ao período 2015-2024 devem ser recalculados conforme SELIC, retroativamente.
Ressalva importante: A Lei 14.905/2024 eventualmente poderá alterar esse regime através de regulamentação do Conselho Monetário Nacional. Recomenda-se acompanhamento de futuras normalizações.
Q3: Qual o espaço para defesa por devedores quanto à taxa SELIC?
R: Tecnicamente reduzido. Superada a questão hermenêutica pela Corte Especial, defensas tradicionais quanto a excessividade da taxa ou desproporcionalidade encontram fundamento limitado no ordenamento vigente.
Espaço jurídico remanescente restringe-se a: (i) demonstração de contrato anterior que expressamente prevê taxa distinta; (ii) alegação de vícios na metodologia de cálculo de SELIC específica (não questionar SELIC per se).
Q4: Como se operacionaliza o cálculo de SELIC?
R: A SELIC é calculada mediante produto dos fatores diários acumulados (método composto), obtidos junto ao Banco Central do Brasil através de plataforma específica (www.bcb.gov.br).
O cálculo manual é possível mas trabalhoso. Software jurídico especializado, assessoria contábil com expertise em cálculos judiciais ou calculadora disponibilizada pelo próprio BCB constituem recursos recomendados.
Q5: Lei 14.905/2024 já se encontra em plena vigência?
R: Sim, publicada em Diário Oficial em 3 de julho de 2024. Encontra-se em vigência integral. Permanecem pendentes, contudo, regulamentação complementar do Conselho Monetário Nacional quanto à metodologia precisa de dedução de correção monetária em cenários específicos.
Q6: Qual o impacto para operadores de cobrança judicial?
R: Impacto multidimensional significativo. Carteiras de cobrança devem ser reavaliadas sob nova metodologia. Devedores recebem potencial alívio patrimonial (valores menores); credores podem experimentar redução em arrecadação efetiva.
Tal dinâmica, contraditoriamente, pode gerar efeitos favoráveis a credores em longo prazo (incremento de acordos pré-litigiosos), uma vez que reduz incentivos para litigância perpétua.
Q7: A decisão STJ afeta contratos de refinanciamento ou renegociação?
R: Depende. Se o refinanciamento ou renegociação expressamente redefine taxa de juros moratórios, o contrato novo prevalece. Se meramente dilata prazos sem redefinir taxa, a taxa anterior (SELIC conforme STJ Tema 1368) continua incidindo.
Impacto Sistêmico e Implicações Macroeconômicas
A decisão do STJ Tema 1368 transcende questão técnica de hermenêutica civil. Suas repercussões incidem sobre estrutura financeira nacional e incentivos comportamentais múltiplos.
Dinâmica de Incentivos para Credores
A adoção de SELIC como parâmetro legal, em comparação com regime anterior (1% + inflação), resulta em remuneração potencialmente menor para credores em grande número de cenários. Essa redução de remuneração, paradoxalmente, gera efeito econômico benéfico:
(i) Estimulo a acordos pré-judiciais: Se a recuperação judicial resulta em montante substancialmente reduzido, credores tornam-se mais propensos a negociar diretamente com devedores, reduzindo litígios;
(ii) Eliminação de incentivos perversos: O regime anterior, ao gerar remuneração civil superior à rentabilidade oferecida pelo sistema financeiro, criava perverso estímulo a litigância crônica. A SELIC elimina essa anomalia.
Dinâmica de Incentivos para Devedores
Inversamente, a redução do montante devido potencialmente:
(i) Aumenta capacidade de adimplemento: Devedores confrontam-se com obrigações numericamente menores, facilitando cumprimento de sentença;
(ii) Reduz incentivos a procrastinação: Se a demora não resultava em redução proporcional da dívida (como sob regime anterior, onde 1% acumulava indefinidamente), agora a demora apenas incrementa a SELIC, cujo crescimento é mais contido;
(iii) Melhora equidade: Devedores civis não arcam com remuneração superior àquela obtida por bancos em operações de baixíssimo risco.
Impactos sobre Carteiras de Risco
Instituições financeiras, sociedades de gestão de crédito e operadores de cobrança devem recalibrar seus modelos atuariais. Carteiras de contas a receber e estruturas de precificação de operações de crédito que incorporavam expectativa de 1% mensal acrescido de inflação enfrentarão redimensionamento.
Tal redimensionamento não configura, necessariamente, resultado adverso em longo prazo. A redução de incerteza jurídica e a convergência para parâmetro alinhado com realidade macroeconômica podem incrementar confiança institucional.
Coerência com Política Monetária Nacional
Aspecto fundamental: a decisão alinha o Poder Judiciário com orientações da política monetária do Banco Central. Quando tribunais impõem remuneração divorciada de SELIC, criam fragmentação normativa que complexifica ambiente de negócios e gera desconfiança.
A decisão STJ Tema 1368, nesse sentido, representa movimento de racionalização e conformidade sistemática, promovendo segurança econômica nacional.
Conclusão: Direcionamentos Estratégicos para Operadores Jurídicos
A decisão STJ Tema 1368 consolida tese de considerável relevância sistemática, com implicações que transcendem questão meramente hermenêutica. A reconfiguração da metodologia de cálculo de juros moratórios civis incide diretamente sobre estruturas operacionais, modelos atuariais e práticas consolidadas em diversos segmentos do mercado jurídico e financeiro.
Agenda de Conformação Normativa
Para profissionais que operam em áreas de direito civil, empresarial e contratual:
1. Revisão de bases de cálculo em passivos judiciais existentes Carteiras com processos pendentes devem ser reavaliadas sob nova metodologia, considerando a aplicação da decisão STJ Tema 1368 para períodos de inadimplência anteriores a 3 de julho de 2024, e da Lei 14.905/2024 para períodos posteriores.
2. Atenção particular a sentenças transitadas em julgado Sentenças já acobertadas pela coisa julgada material não sofrem alteração automática. Ressalva-se que sentenças ainda em fase recursal podem ser alteradas conforme jurisprudência consolidada.
3. Tratamento de sentenças com termos iniciais distintos Sentenças que expressamente especificam termos iniciais diversos para juros moratórios e correção monetária requerem análise casuística quanto à interação com Lei 14.905/2024. Aguarda-se orientação do Conselho Monetário Nacional.
4. Padronização de linguagem contratual prospectiva Contratos futuros devem conter disposições expressas e unívocas quanto ao regime de juros moratórios, evitando remissões a “taxa legal” ou “taxa em vigor” que possam gerar futuras litígios hermenêuticos.
5. Implementação de processos de cálculo especializado A operacionalização de cálculos em SELIC exige infraestrutura técnica adequada (software especializado, assessoria contábil com expertise jurídica ou ferramentas do Banco Central).
6. Monitoramento de regulamentação complementar Recomenda-se acompanhamento de orientações futuras do Conselho Monetário Nacional quanto à operacionalização da Lei 14.905/2024, particularmente quanto a cenários de termos iniciais distintos.
Artigo atualizado em outubro de 2024 conforme decisão STJ Tema 1368 (REsp 1.795.982-SP, publicado em Informativo de Jurisprudência 867) e Lei 14.905/2024.
O presente estudo constitui análise técnico-jurídica de caráter informativo. Para questões específicas relacionadas a casos concretos, recomenda-se assessoria jurídica qualificada.
