STF Consolida Constitucionalidade da CIDE-Remessas: Análise da Decisão do Tema 914 e Impactos para Empresas com Operações Transnacionais

21 de agosto de 2025

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Por Maurício Lindenmeyer Barbieri
Sócio-gerente da Barbieri Advogados
Mestre em Direito (UFRGS), inscrito na OAB da Alemanha, Portugal e Brasil

Introdução

Em decisão de grande repercussão econômica finalizada em 13 de agosto de 2024, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou constitucional a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (CIDE) incidente sobre remessas ao exterior, consolidando interpretação ampla sobre sua base de incidência. O julgamento do Recurso Extraordinário 928.943 (Tema 914), relatado pelo Ministro Luiz Fux, evitou impacto estimado em R$ 19,6 bilhões à União e estabelece marcos definitivos para empresas que mantêm contratos internacionais.

O Caso Concreto e a Repercussão Geral

O leading case originou-se de contestação da Scania Latin America Ltda. contra decisão do Tribunal Regional Federal da 3ª Região que validou a cobrança da CIDE sobre compartilhamento de custos (cost sharing) de pesquisa e desenvolvimento com sua matriz sueca. A empresa questionava a constitucionalidade da exação, alegando violação ao princípio da isonomia e desvio de finalidade dos recursos arrecadados.

A CIDE foi instituída pela Lei 10.168/2000 com objetivo de financiar o Programa de Estímulo à Interação Universidade-Empresa para o Apoio à Inovação, planejado para estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro. A contribuição incide à alíquota de 10% sobre os valores remetidos ao exterior. Posteriormente, com a Lei 10.332/2001, a CIDE passou a alcançar contratos que não envolvem transferência de tecnologia, incluindo serviços técnicos e de assistência administrativa.

A Votação e as Correntes de Entendimento

Corrente Restritiva (Vencida)

O Ministro Relator Luiz Fux, acompanhado pelos Ministros André Mendonça, Dias Toffoli e Cármen Lúcia, defendeu interpretação restritiva da base de incidência. Para Fux, não é constitucional a incidência da CIDE sobre outros serviços, como pagamento de direitos autorais, exploração de software comum ou prestação de trabalhos nos âmbitos administrativo e jurídico, devendo o alcance ser limitado aos casos de exploração de tecnologia.

Corrente Ampla (Vencedora)

O Ministro Flávio Dino abriu divergência pela possibilidade ampla de cobrança, sendo acompanhado pelos Ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso. Esta corrente prevaleceu com seis votos, consolidando entendimento de que a CIDE incide sobre contratos que envolvam não apenas exploração de tecnologia, mas também serviços técnicos e de assistência administrativa.

Fundamentos da Decisão Majoritária

1. Interpretação Constitucional Ampla

O Ministro Alexandre de Moraes destacou que a Lei 10.332/01 ampliou legitimamente a base da CIDE para incluir, além de transferência e licenciamento de tecnologia, serviços técnicos, assistência administrativa e pagamento de royalties em geral. A Corte reconheceu que a Constituição Federal não exige que o contribuinte seja beneficiário direto da arrecadação.

2. Evolução Legislativa

O Ministro Luís Roberto Barroso analisou a evolução legislativa do art. 2º da Lei 10.168/00 e o § 2º, introduzido pela Lei 10.332/01, aplicando a regra de direito intertemporal segundo a qual norma posterior prevalece sobre anterior. Para Barroso, a referibilidade prevista no art. 149 da CF deve ser analisada sob a ótica do destino dos recursos arrecadados, não da base material de incidência.

3. Soberania Tecnológica

O Ministro Flávio Dino enfatizou que o país “não pode ser uma fazenda exportadora de commodities” e que “precisamos ter instrumentos de soberania tecnológica”, reforçando a função extrafiscal da contribuição.

Aspectos Técnico-Processuais Relevantes

Destinação Integral dos Recursos

Por unanimidade, o STF confirmou a destinação integral da arrecadação ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), rechaçando alegações de desvio de finalidade. A tese vencedora condiciona a validade da cobrança à destinação integral dos recursos ao FNDCT.

Modulação dos Efeitos

Embora o acórdão ainda não tenha sido publicado, é provável que o STF module os efeitos da decisão, seguindo precedente do RE 574.706 (exclusão do ICMS da base de PIS/COFINS), com aplicação ex nunc e ressalva de ações em curso.

Impactos Práticos para Empresas

1. Ampliação da Base Tributável

A decisão consolida interpretação abrangente da CIDE, alcançando:

  • Contratos de licenciamento e transferência de tecnologia
  • Serviços técnicos especializados
  • Serviços de assistência administrativa
  • Royalties de qualquer natureza
  • Direitos autorais e exploração de software

2. Compliance Tributário Internacional

Empresas multinacionais devem revisar seus contratos internacionais para adequação à interpretação consolidada, especialmente:

  • Contratos de prestação de serviços técnicos
  • Acordos de assistência administrativa
  • Licenciamento de software e tecnologia
  • Pagamento de royalties

3. Planejamento Fiscal

A decisão impõe necessidade de reavaliação do planejamento tributário para operações transfronteiriças, considerando a incidência confirmada da CIDE sobre base ampla.

Efeitos da Decisão

Aplicação da Decisão

A decisão do STF tem efeitos vinculantes para toda a administração pública e Poder Judiciário. A publicação oficial do acórdão esclarecerá aspectos como eventual modulação temporal dos efeitos e a tese de repercussão geral definitiva.

Esclarecimentos Futuros

Com a constitucionalidade confirmada, eventuais discussões futuras tenderão a focar em aspectos específicos como:

  • Enquadramento preciso de determinadas atividades
  • Definição dos conceitos de “serviços técnicos” e “assistência administrativa”
  • Questões relacionadas à base de cálculo

Contexto Internacional

A confirmação da constitucionalidade da CIDE-Remessas pelo STF cristaliza um paradoxo da política tributária brasileira: enquanto o país busca acelerar sua transformação digital e modernização industrial, consolida simultaneamente barreiras fiscais que encarecem o acesso à tecnologia estrangeira. A decisão, embora ofereça segurança jurídica, perpetua um modelo tributário que impõe custos adicionais de 10% sobre transferências tecnológicas cruciais para a competitividade empresarial brasileira.

Este cenário pode desencadear efeitos econômicos reflexos significativos: empresas multinacionais podem repassar os custos tributários aos preços finais, reduzindo o poder de compra doméstico; startups e empresas de base tecnológica enfrentarão maior oneração para acessar softwares e serviços especializados; e o país poderá experimentar desaceleração na absorção de inovações, precisamente quando a velocidade de adoção tecnológica determina vantagens competitivas globais. A ironia reside no fato de que um tributo destinado a fomentar a inovação nacional pode, paradoxalmente, retardar a difusão tecnológica que alimenta essa mesma inovação.

A decisão do STF alinha-se com tendências internacionais de tributação de operações digitais e serviços transfronteiriços. A interpretação ampla da CIDE reflete preocupação crescente dos Estados com a tributação adequada da economia digitalizada.

Convergência Global

A abordagem brasileira encontra paralelos em iniciativas da OCDE sobre tributação da economia digital e nas Digital Services Tax implementadas por diversos países europeus, demonstrando convergência global na tributação de serviços tecnológicos transnacionais.

Conclusões

A decisão do STF no Tema 914 representa marco definitivo na interpretação da CIDE-Remessas, consolidando sua constitucionalidade com base de incidência ampla. O julgamento encerra anos de incerteza jurídica, mas também confirma mais um custo tributário para operações internacionais, encarecendo a importação de serviços e tecnologia no Brasil. Para empresas com operações internacionais, a decisão exige:

  1. Revisão imediata de contratos internacionais em vigor
  2. Adequação dos procedimentos de compliance tributário
  3. Reavaliação de estratégias de planejamento fiscal internacional
  4. Monitoramento da publicação oficial do acórdão para verificação de eventual modulação

A interpretação ampla confirmada pelo STF reforça a função extrafiscal da CIDE como instrumento de política tecnológica nacional, exigindo das empresas maior atenção aos aspectos tributários de suas operações transnacionais.