Regulamentação de Criptoativos pelo Banco Central: Análise Crítica do Novo Marco Normativo
Regulamentação de Criptoativos pelo Banco Central: Análise Crítica do Novo Marco Normativo
Introdução
Em 10 de novembro de 2025, o Banco Central do Brasil publicou as Resoluções BCB nº 519, 520 e 521, estabelecendo o aguardado marco regulatório para a prestação de serviços de ativos virtuais no país. Após quase três anos da promulgação da Lei nº 14.478/2022, conhecida como Marco Legal dos Criptoativos, o mercado finalmente recebe as diretrizes operacionais para adequação ao novo regime normativo. As resoluções, que entrarão em vigor em 2 de fevereiro de 2026, representam o esforço regulatório mais abrangente já empreendido na América Latina para disciplinar o setor de criptoativos.
O arcabouço normativo adota abordagem claramente inspirada na regulação bancária tradicional, criando as Sociedades Prestadoras de Serviços de Ativos Virtuais (SPSAVs) e estendendo a elas praticamente toda a estrutura regulatória aplicável às instituições financeiras. A Resolução 519 disciplina os processos autorizativos; a 520 estabelece requisitos operacionais e de governança; enquanto a 521 integra as operações com criptoativos ao mercado de câmbio. Este modelo regulatório, embora proporcione segurança jurídica há muito demandada pelo mercado, apresenta desafios significativos de implementação que merecem análise cuidadosa.
Arquitetura das Sociedades Prestadoras de Serviços
O novo marco estabelece três modalidades distintas de SPSAVs, cada uma com escopo operacional específico e vedações expressas à cumulação de atividades. As sociedades intermediárias podem realizar subscrição de emissões, negociação, administração de carteiras e operações de staking, mas estão impedidas de exercer custódia direta. Os custodiantes, por sua vez, limitam-se exclusivamente às atividades de guarda e controle de chaves privadas, com rigorosos requisitos de segregação patrimonial. Apenas as corretoras de ativos virtuais podem cumular intermediação e custódia, reproduzindo modelo similar ao das corretoras de valores mobiliários tradicionais.
A segregação obrigatória entre intermediação e custódia representa escolha regulatória que diverge substancialmente do modelo de negócios predominante no mercado global de criptoativos. Exchanges internacionais como Binance, Coinbase e Kraken operam historicamente com modelo integrado, onde a mesma entidade realiza negociação e mantém custódia dos ativos. A imposição de segregação funcional pode gerar ineficiências operacionais e aumento de custos, particularmente considerando que a liquidação de operações em blockchain frequentemente requer controle simultâneo de chaves privadas.
Os requisitos de constituição societária impõem capital mínimo compatível com instituições financeiras tradicionais, exigência de pelo menos três diretores estatutários com responsabilidades específicas perante o Banco Central, e vedação expressa à utilização de escritórios virtuais ou espaços compartilhados como sede. Tais exigências representam barreira de entrada considerável, especialmente para startups e empresas nativas digitais que tradicionalmente operam com estruturas enxutas e predominantemente remotas.
Integração ao Sistema de Câmbio
A Resolução 521 promove integração inédita entre o mercado de criptoativos e o sistema de câmbio tradicional, classificando diversas operações com ativos virtuais como operações cambiais. Pagamentos e transferências internacionais com criptoativos, operações com stablecoins e transferências envolvendo carteiras autocustodiadas passam a ser enquadradas como operações de câmbio, sujeitas aos controles e limitações correspondentes.
O estabelecimento de limites operacionais diferenciados por tipo de instituição cria hierarquia competitiva artificial no mercado. Enquanto bancos podem operar sem restrições de valor, as corretoras e distribuidoras ficam limitadas a US$ 500.000 por operação, e as SPSAVs a meros US$ 100.000 quando a contraparte não for instituição autorizada. Esta estratificação favorece claramente instituições bancárias tradicionais em detrimento de empresas especializadas em criptoativos, potencialmente com maior expertise técnica no setor.
Particularmente complexa é a classificação de stablecoins como instrumentos sujeitos à regulamentação de crédito externo quando utilizadas em operações de financiamento. A natureza global e descentralizada desses ativos, frequentemente emitidos por entidades no exterior sem vinculação clara com jurisdições específicas, torna questionável a aplicabilidade prática de controles cambiais tradicionais. Como registrar no Sistema de Câmbio operações realizadas através de protocolos DeFi autônomos, sem contraparte identificável, permanece questão sem resposta clara na normativa.
Desafios Práticos de Implementação
A implementação do marco regulatório apresenta desafios técnicos e operacionais que revelam tensão fundamental entre a natureza descentralizada dos criptoativos e o modelo regulatório centralizado adotado. A exigência de identificação de proprietários de carteiras autocustodiadas, prevista no artigo 76-A da Resolução 521, exemplifica essa contradição. Carteiras podem ser criadas offline, através de processos matemáticos determinísticos, sem qualquer vinculação a entidades ou sistemas centralizados. Endereços blockchain são pseudônimos por design, e a tentativa de impor identificação compulsória esbarra em limitações técnicas intransponíveis.
Os custos de compliance projetados para adequação às normas são substanciais. Além dos requisitos de capital mínimo, as SPSAVs deverão implementar estruturas de governança com no mínimo três diretores estatutários, realizar auditorias independentes bienais, manter sistemas de controles internos compatíveis com instituições financeiras, implementar políticas documentadas para onze áreas distintas de atuação, e reportar diariamente informações ao Banco Central. Estimativas conservadoras indicam custos operacionais anuais entre R$ 5 e 10 milhões apenas para manutenção da estrutura de compliance, valor que pode inviabilizar operação de exchanges médias e pequenas que hoje atendem nichos específicos do mercado.
A normativa ignora completamente a existência de protocolos DeFi (Finanças Descentralizadas), DEXs (Exchanges Descentralizadas), e outras inovações que prescindem de intermediários centralizados. Ao vedar o uso de “misturadores” e “embaralhadores” no artigo 90 da Resolução 520, o regulador demonstra incompreensão sobre a natureza de protocolos como CoinJoin ou smart contracts autônomos como Tornado Cash, que existem como código imutável em blockchain, impossíveis de serem “desligados” ou controlados por qualquer jurisdição.
A imposição do travel rule, exigindo informações completas de remetente e destinatário em todas as transações, colide frontalmente com características fundamentais de redes como Bitcoin e Ethereum. Transações em Lightning Network, por exemplo, são roteadas através de múltiplos nós intermediários sem conhecimento da origem ou destino final. Atomic swaps ocorrem diretamente entre blockchains sem intermediário identificável. A regulamentação parece ter sido elaborada considerando apenas o modelo tradicional de exchanges centralizadas, ignorando a evolução tecnológica do setor.
Particularmente problemática é a vedação à compra e venda de ativos virtuais com pagamento em moeda estrangeira, estabelecida no artigo 76-A da Resolução 521. Considerando que o mercado global opera predominantemente em dólares americanos, e que stablecoins como USDT e USDC são essencialmente representações tokenizadas de moeda estrangeira, a proibição cria paradoxo operacional de difícil resolução prática.
Impactos Esperados no Mercado
O novo marco regulatório provocará inevitável consolidação no mercado brasileiro de criptoativos. Exchanges menores, incapazes de arcar com os custos de adequação, serão forçadas a encerrar operações ou buscar aquisição por players maiores. Este processo de concentração, embora possa trazer maior solidez ao sistema, reduzirá competição e inovação, potencialmente resultando em serviços mais caros e menos diversos para consumidores finais.
A criação de vantagens competitivas artificiais para bancos tradicionais, através dos limites operacionais diferenciados, sugere intenção regulatória de favorecer a entrada de incumbentes do sistema financeiro tradicional no mercado de criptoativos. Bancos podem criar SPSAVs subsidiárias, aproveitando sua estrutura de compliance existente e acesso a capital, enquanto empresas nativas do setor cripto enfrentarão barreiras desproporcionais. Esta assimetria regulatória pode resultar em “bancarização” do mercado de criptoativos, com perda de características inovadoras que distinguem o setor.
Previsível é a migração de volume significativo para jurisdições menos restritivas. Traders profissionais e investidores institucionais sofisticados continuarão acessando exchanges internacionais através de estruturas offshore, VPNs, ou simplesmente mantendo recursos no exterior. O mercado brasileiro pode bifurcar-se entre um segmento “regulado” para varejo e pequenos investidores, e um segmento “internacional” para investidores qualificados, reproduzindo dinâmica já observada em outras jurisdições com regulação excessivamente restritiva.
A limitação de US$ 100.000 por operação para SPSAVs criará fricções operacionais significativas para investidores institucionais e high net worth individuals. Operações que hoje são executadas em bloco único precisarão ser fragmentadas, aumentando custos de transação e complexidade operacional. Este limite, aparentemente arbitrário e sem fundamentação técnica clara, pode incentivar estruturação de operações através de múltiplas entidades ou migração completa para plataformas internacionais.
Paradoxalmente, a sobre-regulação pode criar oportunidades de negócios em nichos específicos. Demanda por assessoria jurídica especializada, consultoria de compliance, serviços de classificação de operações para fins cambiais, e estruturação de veículos de investimento compatíveis com a regulação deve crescer substancialmente. Empresas de tecnologia focadas em soluções de conformidade regulatória para o setor cripto encontrarão mercado receptivo no Brasil.
Análise Comparativa e Perspectivas
A abordagem regulatória brasileira destoa significativamente dos modelos adotados em outras jurisdições relevantes. Enquanto a União Europeia, através do Markets in Crypto-Assets Regulation (MiCA), buscou criar framework específico para criptoativos respeitando suas características únicas, o Brasil optou por transpor quase integralmente o arcabouço bancário tradicional. Jurisdições como Singapura e Suíça desenvolveram regimes regulatórios mais flexíveis, com sandbox regulatório e licenças progressivas que permitem startups crescerem gradualmente. A escolha brasileira por modelo “tudo ou nada”, com barreiras de entrada equivalentes às de instituições financeiras tradicionais, pode comprometer competitividade internacional do país no setor.
Questões fundamentais permanecem não endereçadas pela regulamentação. DeFi (Finanças Descentralizadas), que movimenta globalmente centenas de bilhões de dólares em protocolos autônomos, não é sequer mencionada. NFTs (Tokens Não Fungíveis) habitam zona cinzenta regulatória. DAOs (Organizações Autônomas Descentralizadas) são incompatíveis com requisitos de governança corporativa tradicional. Soluções de Layer 2 como Lightning Network ou Polygon operam em camada de abstração que escapa completamente ao framework regulatório proposto. Esta lacuna normativa criará insegurança jurídica justamente nos segmentos mais inovadores do ecossistema.
A tensão entre o desejo legítimo de proteção ao investidor e a necessidade de preservar capacidade de inovação permanece mal resolvida. Ao impor custos de compliance desproporcionais e requisitos operacionais incompatíveis com a natureza global e permanentemente ativa do mercado de criptoativos, a regulamentação pode alcançar efeito oposto ao pretendido: ao invés de proteger investidores brasileiros, pode empurrá-los para plataformas internacionais não reguladas, onde ficam completamente desprotegidos.
Ajustes pós-implementação serão inevitáveis. A realidade operacional do mercado, impossibilidades técnicas de enforcement, e pressão competitiva internacional forçarão revisões. Experiências de outras jurisdições demonstram que primeiras versões de regulamentação cripto raramente sobrevivem ao contato com a realidade do mercado. Estados Unidos revisaram múltiplas vezes suas diretrizes, Japão ajustou significativamente seu framework após incidentes de mercado, e mesmo a União Europeia já sinaliza necessidade de ajustes no MiCA antes mesmo de sua implementação completa.
A ausência de período de transição adequado ou sandbox regulatório representa oportunidade perdida. Empresas em operação terão apenas 270 dias para adequação completa, prazo insuficiente considerando a magnitude das mudanças exigidas. Um regime de autorização progressiva, permitindo que empresas menores começassem com escopo limitado e expandissem gradualmente conforme demonstrassem capacidade operacional, seria mais conducente ao desenvolvimento saudável do mercado.
Conclusão
O marco regulatório estabelecido pelas Resoluções BCB 519, 520 e 521 representa inegável avanço institucional para o mercado brasileiro de criptoativos, encerrando período de incerteza jurídica que perdurava desde 2022. A clareza normativa, mesmo que imperfeita, permite que empresas sérias planejem investimentos de longo prazo e que instituições tradicionais participem do mercado com maior segurança.
Contudo, o excesso de requisitos e a inadequação do modelo regulatório à natureza tecnológica dos criptoativos podem comprometer a competitividade e inovação do setor no Brasil. A imposição de estrutura bancária tradicional a negócios nativamente digitais e globais cria fricções que podem inviabilizar modelos de negócios legítimos e empurrar inovação para outras jurisdições.
Será fundamental que regulador e mercado mantenham diálogo constante durante período de implementação. Ajustes pragmáticos, baseados em evidências e experiências práticas, serão necessários para equilibrar objetivos legítimos de proteção ao investidor com preservação da capacidade de inovação. O sucesso do marco regulatório dependerá menos de sua rigidez inicial e mais de sua capacidade de evolução adaptativa. O mercado, por sua vez, precisará desenvolver expertise jurídica e operacional sofisticada para navegar as complexidades do novo regime, identificando oportunidades dentro das restrições impostas e contribuindo construtivamente para aperfeiçoamento da regulamentação.
Maurício Lindenmeyer Barbieri
Advogado inscrito na OAB/RS 36.798, OAB/DF 24.037, OAB/SC 61.179-A, OAB/PR 101.305 e OAB/SP 521.298. Inscrito na Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart nº 50.159) e Ordem dos Advogados de Portugal (Lisboa nº 64443L). Contador inscrito no CRC-RS 106371/O. Mestre em Direito pela UFRGS. Membro da Associação de Juristas Brasil-Alemanha. Sócio da Barbieri Advogados.
