Questões constitucionais do CIB: limites e defesas jurídicas
Análise dos limites ao poder de tributar, delegação regulamentar, capacidade contributiva e teses defensivas aplicáveis ao novo sistema de tributação imobiliária
A implementação do Cadastro Imobiliário Brasileiro e do novo sistema tributário estabelecido pela Reforma suscita questionamentos constitucionais que demandam análise técnica aprofundada. Embora a Lei Complementar 214/2025 represente escolha política legítima do legislador, diversos aspectos de sua aplicação podem conflitar com princípios e garantias constitucionais fundamentais.
A experiência histórica demonstra que inovações legislativas significativas frequentemente geram contencioso judicial extenso até consolidação jurisprudencial definitiva. Contribuintes e profissionais do setor devem compreender os fundamentos constitucionais aplicáveis, identificar potenciais vícios na aplicação das novas regras e conhecer teses defensivas articuláveis em âmbito administrativo ou judicial.
Este artigo examina os principais pontos de tensão entre a nova legislação e os princípios constitucionais estruturantes, oferecendo perspectiva equilibrada que reconhece tanto a legitimidade dos objetivos da Reforma quanto a necessidade de proteção aos direitos fundamentais.
Legalidade tributária e limites da delegação regulamentar
O artigo 150, I, da Constituição Federal veda exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Este princípio da estrita legalidade tributária assegura que apenas o Poder Legislativo, mediante processo democrático, possa instituir ou majorar exigências tributárias.
A jurisprudência do STF consolidou que a lei deve definir todos os elementos essenciais da obrigação tributária: hipótese de incidência, sujeito passivo, base de cálculo, alíquota e forma de lançamento. Delegações ao Executivo limitam-se a aspectos secundários ou atualização monetária.
No contexto do CIB, o ponto de tensão reside na delegação da metodologia de apuração do valor de referência. O artigo 256 da LC 214 estabelece que será apurado mediante metodologia definida em regulamento, considerando preços de mercado, informações administrativas e características do imóvel.
Embora o valor de referência não constitua tecnicamente base de cálculo, funciona como meio de prova para arbitramento. A ausência de definição legal precisa da metodologia, delegando ao Executivo poderes amplos para estabelecer critérios que influenciarão a tributação, pode configurar violação ao princípio da legalidade.
Contribuintes que considerarem excessiva a discricionariedade regulamentar poderão questionar judicialmente essa delegação ou a validade do regulamento por extrapolar limites legais.
Capacidade contributiva e seus limites
O artigo 145, §1º, da Constituição estabelece que impostos serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Este princípio exige que a tributação considere a aptidão efetiva para suportar carga fiscal, vedando exações descoladas da realidade econômica individual.
Diversas situações podem configurar violação à capacidade contributiva no contexto imobiliário. Proprietário de imóvel valorizado recebido por herança, sem renda compatível, exemplifica descompasso entre base objetiva e capacidade real. Aposentado residente em imóvel familiar valorizado, mas com rendimentos limitados, pode ser compelido a alienar a propriedade para pagar tributos decorrentes de valor de referência elevado.
A equiparação de pessoas físicas a contribuintes regulares quando ultrapassados os limites estabelecidos pode igualmente ser questionada. Pequeno investidor com modesta carteira de imóveis populares, alcançando receita bruta de R$ 250 mil mas com margem líquida reduzida, será tributado sobre valor bruto com alíquotas substanciais.
A jurisprudência admite que tributos reais considerem primordialmente o valor do bem, mas exige que não resultem em confisco ou impossibilidade de exercício da propriedade. Aumentos abruptos de valores venais respaldados no CIB, mas descolados da capacidade contributiva, poderão ser questionados com fundamento neste princípio.
Vedação ao confisco e razoabilidade
O artigo 150, IV, da Constituição veda utilização de tributo com efeito confiscatório. A doutrina e jurisprudência entendem que tributação confiscatória absorve parcela substancial da renda ou patrimônio, inviabilizando atividade econômica ou direito de propriedade.
No contexto imobiliário, IPTU que supere percentual significativo do valor venal ou da renda proporcionada pode configurar confisco. O STF reconhece que a avaliação deve considerar a carga tributária total, não tributos isoladamente.
Proprietário que suporta IPTU, taxas, contribuições de melhoria, além de IBS e CBS sobre locação ou venda, pode ter carga total comprometedora. A vedação ao confisco abrange situações onde tributação excessiva inviabiliza economicamente a manutenção da propriedade.
O princípio da razoabilidade, decorrente do devido processo legal substantivo, exige proporção adequada entre meios e fins. Aumentos abruptos sem período de transição adequado ou desconsideração de situações vulneráveis podem violar a razoabilidade.
Direito adquirido e irretroatividade tributária
O artigo 5º, XXXVI, da Constituição assegura proteção ao direito adquirido e ato jurídico perfeito. O artigo 150, III, “a”, veda cobrança de tributos sobre fatos geradores anteriores à vigência da lei instituidora.
A aplicação ao novo sistema suscita questionamentos quanto a contratos firmados sob regime anterior. Promessas de compra e venda celebradas antes de 2027, com preço fixado considerando tributação vigente, representam atos jurídicos perfeitos protegidos constitucionalmente.
Construções iniciadas sob regime anterior, com custos estruturados considerando tributação vigente, enfrentam risco de inviabilização se tributadas integralmente sob novas regras. O regime transitório do RET oferece proteção parcial, mas incorporadores não enquadrados poderão questionar aplicação retroativa.
A jurisprudência admite modulação de efeitos quando aplicação imediata gerar prejuízos desproporcionais a situações consolidadas.
Proteção de dados e privacidade patrimonial
A LGPD estabelece regime de proteção a dados pessoais, incluindo informações patrimoniais. O artigo 5º, XII, da Constituição, conforme interpretação do STF, reconhece proteção à privacidade como direito fundamental.
O CIB envolve compartilhamento massivo de informações patrimoniais entre órgãos públicos. Dados sobre propriedade, valor, localização e histórico de transações serão centralizados e acessíveis a diversas administrações.
Embora o compartilhamento para fiscalização seja admitido pela LGPD, devem ser observados princípios de finalidade, necessidade, proporcionalidade e segurança. Questionamentos incluem adequação das medidas de segurança e preocupações quanto à privacidade patrimonial.
A publicidade do valor de referência permite consulta de estimativas de valor, suscitando preocupações sobre privacidade e segurança. Utilização indevida de dados ou compartilhamento desproporcional poderão ser questionados judicialmente.
Equiparação de pessoas físicas: limites constitucionais
A equiparação de pessoas físicas a contribuintes regulares quando ultrapassados limites objetivos pode ser questionada constitucionalmente.
Argumenta-se que investimento patrimonial familiar, ainda que resulte em receita superior a R$ 240 mil anuais, não constitui atividade empresarial sujeita a tributação sobre consumo. O IBS e CBS são impostos sobre valor agregado, tradicionalmente incidentes sobre atividades profissionais, não gestão patrimonial pessoal.
Critério puramente quantitativo, desconsiderando natureza e finalidade da atividade, pode não atender exigência constitucional de discriminações baseadas em fundamento razoável. A diferenciação entre proprietário de três e quatro imóveis pode parecer arbitrária considerando circunstâncias concretas.
Defesas baseadas em violação à isonomia, razoabilidade e capacidade contributiva poderão ser articuladas por contribuintes que demonstrarem que suas situações não configuram atividade empresarial.
Autonomia municipal e valor de referência
A autonomia municipal, garantida pelo artigo 30 da Constituição, assegura competência privativa para legislar sobre interesse local e instituir tributos próprios.
O IPTU é tributo municipal cuja base de cálculo é definida por legislação local. Questiona-se se utilização do valor de referência federal como parâmetro violaria autonomia municipal, impondo indiretamente critérios da União.
Embora não haja imposição legal, a pressão prática decorrente da disponibilidade pública pode constranger autonomia decisória. Municípios com valores venais inferiores ao referencial poderão enfrentar questionamentos sobre renúncia de receita.
A tensão entre padronização nacional e autonomia municipal constitui questão constitucional relevante que poderá demandar pronunciamento do STF.
Segurança jurídica e previsibilidade
A segurança jurídica, princípio implícito derivado do Estado de Direito, exige previsibilidade e estabilidade, permitindo planejamento baseado em regras claras.
A Reforma estabelece transição gradual entre 2026 e 2033, atendendo parcialmente a exigência. Contudo, aspectos específicos suscitam questionamentos. O prazo de 31/12/2026 para decisões sobre redutor de ajuste é relativamente curto considerando a complexidade necessária.
A ausência de regulamentação completa de aspectos operacionais gera insegurança. O princípio exige que regulamentação seja editada com antecedência suficiente para conhecimento integral das regras.
Teses defensivas e estratégias processuais
Contribuintes dispõem de instrumentos administrativos e judiciais para defesa. No âmbito administrativo: impugnações, recursos e órgãos colegiados. No judicial: ações anulatórias, mandados de segurança e ações declaratórias.
Teses articuláveis incluem:
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Inconstitucionalidade da delegação excessiva ao regulamento
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Violação à capacidade contributiva e vedação ao confisco
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Proteção ao ato jurídico perfeito
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Violação à autonomia municipal
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Violação à LGPD
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Questionamento da equiparação de pessoas físicas
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Violação à segurança jurídica
A articulação exige fundamentação sólida, demonstração de prejuízo concreto e precedentes favoráveis. A tendência inicial será de deferência ao legislador, exigindo demonstração de vícios graves para provimento judicial.
Precedentes e orientação jurisprudencial
O STF e STJ desempenharão papel fundamental na consolidação jurisprudencial. Precedentes sobre temas correlatos oferecem orientação sobre posicionamento provável.
Quanto à delegação regulamentar, o STF admite delegações técnicas mas exige elementos essenciais em lei. Sobre capacidade contributiva, reconhece que tributos reais considerem valor do bem, vedando confisco. Sobre proteção de dados, reconheceu natureza de direito fundamental autônomo. Quanto a transições, admite modulação quando aplicação imediata gerar prejuízos desproporcionais.
Advogados devem familiarizar-se com essa jurisprudência, identificar precedentes aplicáveis e estruturar argumentações consistentes com linhas consolidadas.
Conclusão
A implementação do CIB e do novo sistema tributário representa avanço na modernização administrativa, promovendo transparência e eficiência. Contudo, a amplitude das mudanças suscita questionamentos constitucionais legítimos que gerarão contencioso nos próximos anos.
Os princípios da legalidade, capacidade contributiva, vedação ao confisco, proteção ao direito adquirido, privacidade e segurança jurídica constituem limites inafastáveis ao poder de tributar.
A experiência demonstra que sistemas sofisticados exigem equilíbrio entre eficiência arrecadatória e proteção a direitos, entre padronização técnica e situações individuais, entre objetivos fiscais e preservação da atividade econômica.
Contribuintes informados e adequadamente assessorados, dispostos a questionar aplicações inconstitucionais, desempenham papel essencial na construção de jurisprudência equilibrada. O Poder Judiciário, mediante análise criteriosa, contribuirá para delimitação adequada dos contornos constitucionais, assegurando que objetivos legítimos sejam alcançados sem sacrifício desproporcional de garantias fundamentais.
No próximo e último artigo desta série, apresentaremos checklist prático consolidando ações que proprietários e investidores devem tomar antes de 2027 para adequar-se às novas regras e proteger seus patrimônios.
Sobre o autor
Maurício Lindenmeyer Barbieri é sócio da Barbieri Advogados, Mestre em Direito pela UFRGS, inscrito na Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart), Portugal (OA Lisboa) e Brasil (OAB/RS, DF, SC, PR, SP). Professor universitário, exerceu a docência na PUCRS e UniRitter. Autor de obras especializadas em Direito Processual Civil e Trabalhista.
Artigos da série “CIB e a nova tributação imobiliária”:
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Artigo 1: CIB: o que é o “CPF dos imóveis” e como ele afeta proprietários
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Artigo 2: Valor de referência: como o fisco vai avaliar seu imóvel
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Artigo 3: CIB e tributos municipais: a convergência inevitável?
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Artigo 4: Pessoas físicas como contribuintes: quando o aluguel vira atividade empresarial
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Artigo 5: Redutor de ajuste: entenda o mecanismo que protege seu patrimônio imobiliário
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Artigo 6: Incorporação imobiliária e loteamentos: o que muda na prática
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Artigo 7: Questões constitucionais do CIB: limites e defesas jurídicas (este artigo)
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Próximo: Checklist: o que fazer antes de 2027 para se proteger
