Pessoas físicas como contribuintes: quando o aluguel vira atividade empresarial
Reforma Tributária estabelece critérios objetivos que equiparam pessoas físicas a contribuintes do regime regular do IBS e CBS, com impactos significativos para locadores e investidores imobiliários
A Reforma Tributária acabou com uma distinção histórica do mercado imobiliário brasileiro. Até agora, quem alugava ou vendia imóveis como pessoa física pagava apenas Imposto de Renda sobre os lucros. A partir de 2027, muitos desses proprietários serão tratados como empresas para fins tributários.
A Lei Complementar 214/2025 estabeleceu critérios matemáticos precisos: quem ultrapassar determinados limites de receita ou quantidade de imóveis passa a pagar IBS e CBS, além do Imposto de Renda. É uma mudança radical que pegou muitos investidores de surpresa.
Para quem tem múltiplos imóveis ou realiza vendas frequentes, entender as novas regras deixou de ser opcional. A diferença entre enquadrar-se ou não pode significar milhares de reais a mais em impostos todo ano.
Os critérios de enquadramento estabelecidos pela lei
O artigo 251 da Lei Complementar 214/2025 estabelece critérios objetivos e precisos, sem margem para interpretação. São dois conjuntos de regras, um para locação e outro para alienação.
Para locadores de imóveis, o enquadramento como contribuinte empresarial ocorre quando dois requisitos são atendidos cumulativamente: possuir mais de três imóveis locados E auferir receita superior a R$ 240 mil anuais com aluguéis. A cumulatividade é essencial: dez imóveis que rendem R$ 200 mil anuais não geram enquadramento, assim como dois imóveis que rendem R$ 500 mil também não.
Para alienantes de imóveis, o enquadramento ocorre quando há alienação de mais de três imóveis em um ano, desde que tais imóveis estivessem no patrimônio há menos de cinco anos. O objetivo é distinguir o investidor de longo prazo daquele que realiza operações especulativas de curto prazo.
Há uma terceira hipótese: a construção e venda. Quem construir mais de um imóvel e aliená-lo nos cinco anos seguintes será equiparado a contribuinte empresarial, independentemente de constituição formal de pessoa jurídica.
A lei estabelece ainda regra de enquadramento imediato. Quando os limites são ultrapassados durante o ano corrente (não apenas no ano anterior), incide tributação pelo IBS e CBS sobre o excedente. Exemplificando: se a receita de locação ultrapassar R$ 288 mil no ano corrente (20% acima do limite), incidem os novos tributos já neste exercício sobre o montante excedente.
Poupança familiar versus negócio imobiliário
A Reforma Tributária finalmente colocou no papel uma distinção que sempre existiu na prática: há diferença entre guardar dinheiro em imóveis e fazer dos imóveis um negócio.
A família que compra um apartamento para os filhos, a casa de praia que fica na família por gerações, o imóvel herdado dos pais – isso é patrimônio familiar. Mesmo que eventualmente sejam vendidos ou alugados, são investimentos de longo prazo, uma forma tradicional de poupança.
O tratamento tributário via Imposto de Renda, com suas deduções e tabela progressiva, sempre foi adequado para essas situações.
Mas quando alguém tem dez apartamentos alugados, faturando R$ 500 mil por ano, ou compra e vende cinco imóveis por ano, a história é outra. Essa pessoa está competindo com imobiliárias e construtoras. Faz sentido pagar os mesmos impostos que elas pagam.
O problema é que os limites escolhidos são baixos para a realidade dos grandes centros. Em São Paulo, Rio ou Brasília, ter quatro apartamentos de classe média alugados já ultrapassa facilmente os R$ 240 mil anuais. Muitas famílias que construíram uma pequena poupança em imóveis ao longo de décadas agora serão tratadas como empresas.
A conta que não fecha
Vamos aos números, porque é aí que a mudança fica clara.
Cenário atual (até 2026): João tem quatro apartamentos, cada um alugado por R$ 2.500. Fatura R$ 120 mil por ano. Deduz condomínio, IPTU e manutenção (digamos, 30% da receita). Paga Imposto de Renda sobre R$ 84 mil, o que dá cerca de R$ 15 mil por ano em impostos. Carga tributária efetiva: 12,5% da receita bruta.
Cenário novo (a partir de 2027): O mesmo João agora é contribuinte empresarial (tem mais de três imóveis). Primeiro, paga IBS e CBS. Com o redutor social de R$ 600 por imóvel, a base de cálculo fica em R$ 1.900 por apartamento. Com alíquota reduzida de 8,4%, paga cerca de R$ 7.600 por ano de IBS e CBS. Depois, continua pagando Imposto de Renda sobre o lucro.
A conta final? A carga tributária total pode chegar a 27% da receita bruta, segundo cálculos do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação. É mais que o dobro do cenário atual.
O impacto é ainda pior para quem aluga imóveis populares. Se o aluguel é de R$ 1.000, o redutor social de R$ 600 ajuda bastante. Mas a margem de lucro nesses imóveis já é apertada – qualquer imposto adicional pode tornar o negócio inviável.
A lei criou um mecanismo de proteção: o redutor social de R$ 600 mensais por imóvel residencial. É um desconto na base de cálculo antes de aplicar as alíquotas do IBS e CBS.
Funciona assim: se o aluguel é de R$ 2.000, você paga IBS e CBS sobre R$ 1.400 (R$ 2.000 menos R$ 600). O valor será corrigido pelo IPCA, mantendo o poder de compra ao longo do tempo.
Para imóveis populares, com aluguel próximo a R$ 600, o redutor praticamente elimina o IBS e CBS. É uma proteção importante para não inviabilizar o mercado de locação popular.
Mas há um detalhe crucial: o redutor vale apenas para imóveis residenciais. Salas comerciais, lojas e galpões não têm direito ao benefício. Pagam a alíquota reduzida de 8,4%, mas sem desconto na base.
A boa notícia é que não há limite de uso. Se você tem dez apartamentos residenciais, aplica o redutor de R$ 600 em cada um. Isso favorece quem tem vários imóveis pequenos em vez de poucos imóveis de luxo.
Estratégias para o novo cenário
Diante das novas regras, proprietários têm basicamente três caminhos.
Opção 1: Manter-se dentro dos limites legais
A estratégia mais conservadora consiste em estruturar o patrimônio para permanecer abaixo dos critérios de enquadramento. Limitar a carteira a três imóveis locados ou ajustar valores para manter receita anual inferior a R$ 240 mil.
Para investidores de menor porte, essa alternativa é viável. Para proprietários com patrimônio mais expressivo ou que dependem substancialmente da renda de locações, representa restrição significativa ao desenvolvimento patrimonial.
Opção 2: Constituir pessoa jurídica
A formalização através de pessoa jurídica pode apresentar vantagens tributárias. Empresas optantes pelo lucro presumido frequentemente alcançam carga tributária inferior à incidente sobre pessoas físicas no novo regime. Adicionalmente, a estrutura societária facilita o planejamento sucessório e permite gestão profissionalizada do patrimônio imobiliário.
Contudo, a constituição e manutenção de pessoa jurídica implica custos adicionais: honorários contábeis, obrigações acessórias complexas e eventual tributação na distribuição de lucros. A análise custo-benefício deve ser completa e personalizada.
Opção 3: Reestruturação patrimonial
A reorganização da titularidade dos imóveis, mediante doação parcial a familiares, permite distribuir a propriedade de forma que cada titular permaneça abaixo dos limites estabelecidos.
Essa estratégia requer cuidadoso planejamento: a doação está sujeita ao ITCMD, que pode alcançar 8% do valor do imóvel em alguns estados. Estruturas artificiais ou sem substância econômica podem ser caracterizadas como simulação pela fiscalização.
Aspectos controversos e situações especiais
A aplicação dos critérios de enquadramento apresenta questões que aguardam regulamentação específica, gerando insegurança jurídica em situações concretas.
A definição de “imóveis distintos” para fins de contagem do limite permanece em aberto. Questiona-se se apartamentos no mesmo edifício constituem unidades separadas, se casas em terreno desmembrado contam individualmente, ou se unidades autônomas em condomínio horizontal são consideradas de forma independente.
Para imóveis recebidos por herança ou doação, o prazo quinquenal para caracterização de atividade empresarial computa-se desde a aquisição originária pelo de cujus ou doador. Essa regra protege herdeiros que alienam imóveis familiares logo após o inventário, desde que a propriedade originária seja superior a cinco anos.
Casais em regime de comunhão de bens enfrentam incerteza específica: os limites aplicam-se individualmente ou ao casal como unidade econômica? A literalidade legal refere-se à pessoa física individualmente, mas a interpretação sistemática pode considerar a unidade familiar para evitar planejamentos artificiais mediante segregação formal de propriedade entre cônjuges.
Operações estruturadas também demandam análise cuidadosa. Vendas realizadas através de promessa de compra e venda ou compromisso geram o fato gerador na celebração do contrato, não na transferência definitiva da propriedade. Essa regra impacta significativamente o planejamento de vendas parceladas ou condicionadas.
A burocracia empresarial para pessoas físicas
Quem for enquadrado como contribuinte empresarial enfrentará um novo mundo de obrigações.
Primeiro, precisará de inscrição específica – provavelmente CNPJ ou CPF com natureza especial. Depois, terá que emitir documentos fiscais eletrônicos para cada operação. Nada de recibo simples de aluguel.
A apuração dos impostos seguirá a lógica de débitos e créditos. Você cobra IBS e CBS sobre os aluguéis (débito) e desconta o IBS e CBS pago em reformas e manutenção (crédito). É o regime de não-cumulatividade.
Parece simples, mas não é. Será preciso segregar despesas pessoais das despesas do imóvel. Controlar notas fiscais. Calcular créditos. Fazer apurações mensais. Cumprir obrigações acessórias.
Para quem está acostumado apenas com a declaração anual de Imposto de Renda, é um salto de complexidade enorme. Provavelmente será necessário contratar contador especializado – mais um custo a considerar.
Tempo de decisão
A transformação de pessoas físicas em contribuintes empresariais representa uma das mudanças mais profundas da Reforma Tributária para o setor imobiliário.
Os critérios objetivos da lei trazem segurança jurídica, mas os limites escolhidos são baixos para a realidade brasileira. Muitos pequenos e médios investidores, que construíram patrimônio ao longo de décadas como forma de poupança, agora serão tratados como empresas.
O impacto é especialmente duro para aposentados e famílias que dependem dos aluguéis. A carga tributária pode mais que dobrar, e as obrigações burocráticas se multiplicam exponencialmente.
As alternativas existem – manter-se abaixo dos limites, criar empresa, reestruturar patrimônio – mas cada uma tem custos e riscos. Não há solução única que sirva para todos.
O fundamental é não ser pego de surpresa. Com a entrada em vigor em 2027, ainda há tempo para planejar. Mas as decisões tomadas agora terão impacto por décadas.
Assessoria especializada não é luxo nesse contexto. É investimento necessário para navegar nesse novo ambiente tributário sem naufragar.
No próximo artigo desta série, analisaremos o redutor de ajuste – um mecanismo crucial de transição que pode economizar milhares de reais em impostos na venda de imóveis. A data limite é 31 de dezembro de 2026, e as escolhas feitas até lá serão irreversíveis.
Sobre o autor
Maurício Lindenmeyer Barbieri é sócio da Barbieri Advogados, Mestre em Direito pela UFRGS, inscrito na Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart), Portugal (OA Lisboa) e Brasil (OAB/RS, DF, SC, PR, SP). Professor universitário, exerceu a docência na PUCRS e UniRitter. Autor de obras especializadas em Direito Processual Civil e Trabalhista.
Artigos da série “CIB e a nova tributação imobiliária”:
-
Artigo 1: CIB: o que é o “CPF dos imóveis” e como ele afeta proprietários
-
Artigo 2: Valor de referência: como o fisco vai avaliar seu imóvel
-
Artigo 3: CIB e tributos municipais: a convergência inevitável?
-
Artigo 4: Pessoas físicas como contribuintes: quando o aluguel vira atividade empresarial (este artigo)
-
Próximo: Redutor de ajuste: a escolha que pode economizar em impostos

Equipe de Redação da Barbieri Advogados é responsável pela produção e revisão de conteúdos técnicos, assegurando comunicação clara, precisa e alinhada aos valores institucionais. A Barbieri é inscrita na OAB/RS sob o nº 516.
