Offshores e Paraísos Fiscais: Entendendo os Conceitos Fundamentais Antes da Lei 14.754/2023

25 de outubro de 2025

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Introdução: Compreendendo o Espírito da Lei 14.754/2023 | Barbieri Advogados

Offshores e Paraísos Fiscais: Entendendo os Conceitos Fundamentais Antes da Lei 14.754/2023

Base conceitual essencial para compreender as novas regras tributárias brasileiras


1. INTRODUÇÃO

A promulgação da Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023, com vigência a partir de 1º de janeiro de 2024, representa um marco significativo na evolução do sistema tributário brasileiro, particularmente no que concerne à tributação de rendimentos auferidos no exterior por pessoas físicas residentes no País. A nova legislação insere o Brasil no contexto das reformas tributárias internacionais coordenadas pela OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), alinhando o regime doméstico aos padrões estabelecidos pelo Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting) e às melhores práticas de transparência fiscal. As alterações introduzidas modificam substancialmente o tratamento fiscal de estruturas patrimoniais offshore, aplicações financeiras no exterior, entidades controladas e trusts, impondo novos desafios ao planejamento tributário e patrimonial.

A compreensão adequada dessas mudanças legislativas pressupõe o domínio de conceitos fundamentais que estruturam o debate contemporâneo sobre tributação internacional. A distinção técnica entre planejamento tributário lícito e evasão fiscal, a caracterização jurídica das sociedades offshore e dos paraísos fiscais, bem como o entendimento dos mecanismos internacionais de cooperação fiscal constituem premissas indispensáveis para a análise crítica da Lei 14.754/2023 e de suas implicações práticas. Este artigo propõe-se a estabelecer essa base conceitual, fornecendo aos empresários, investidores e profissionais do direito os instrumentos teóricos necessários para a adequada interpretação do novo regime tributário, cuja análise detalhada será objeto dos artigos subsequentes desta série.


2. OFFSHORES: CONCEITO E USOS LEGÍTIMOS

2.1. O Que São Offshores?

O termo “offshore”, originário da expressão inglesa que literalmente significa “fora da costa”, designa, no contexto jurídico-tributário, sociedades constituídas e domiciliadas em jurisdição diversa daquela de residência fiscal de seus sócios ou beneficiários. Trata-se, portanto, de estrutura societária legalmente estabelecida em território estrangeiro, regida pela legislação local, e que pode exercer atividades econômicas lícitas tanto na jurisdição de sua constituição quanto em outros países, respeitados os requisitos legais aplicáveis.

É fundamental desmistificar a associação automática entre estruturas offshore e ilicitude. A constituição de sociedade em jurisdição estrangeira constitui exercício legítimo da autonomia privada e da liberdade de estabelecimento empresarial, amplamente reconhecida pelo direito internacional. A licitude ou ilicitude de uma estrutura offshore não decorre de sua mera existência, mas sim da finalidade para a qual é utilizada, da transparência de suas operações e da conformidade com as obrigações tributárias e declaratórias aplicáveis. Uma offshore pode servir a propósitos empresariais legítimos, constituindo instrumento juridicamente válido de organização patrimonial e empresarial internacional.

2.2. Usos Legítimos

As sociedades offshore apresentam múltiplas aplicações legítimas no âmbito do planejamento patrimonial e empresarial internacional. Entre as finalidades lícitas mais relevantes, destacam-se:

Planejamento Patrimonial e Sucessório: A constituição de estruturas offshore pode facilitar a organização e a transmissão de patrimônio familiar, permitindo maior eficiência na gestão de ativos localizados em múltiplas jurisdições e possibilitando o planejamento sucessório transnacional. Tais estruturas podem simplificar a administração de bens situados em diferentes países, reduzir custos de inventário e proporcionar maior previsibilidade na transmissão patrimonial.

Investimentos Internacionais: Investidores que atuam em mercados globais frequentemente utilizam sociedades offshore como veículos de investimento, permitindo a consolidação de participações societárias, a gestão centralizada de portfólios diversificados e o acesso a mercados financeiros internacionais. Esta estruturação pode conferir maior flexibilidade operacional e facilitar operações de aquisição, fusão ou alienação de ativos internacionais.

Estruturação de Negócios Globais: Grupos empresariais com atuação multinacional empregam estruturas offshore para organizar suas operações internacionais, estabelecer centros regionais de coordenação, implementar políticas corporativas unificadas e otimizar a gestão de subsidiárias em diferentes países. A utilização de sociedades holding offshore pode proporcionar maior eficiência administrativa e operacional em estruturas empresariais complexas.

Planejamento Tributário Lícito: No âmbito da elisão fiscal – prática lícita de redução da carga tributária por meios legais -, sociedades offshore podem ser utilizadas em conformidade com a legislação aplicável, respeitados os princípios da transparência, da substância econômica e do propósito negocial legítimo. Distingue-se, assim, o planejamento tributário legítimo da evasão fiscal, que constitui prática ilícita caracterizada pela ocultação de informações ou pela utilização de meios fraudulentos.


3. PARAÍSOS FISCAIS

3.1. Definição e Características

Paraísos fiscais, também denominados “jurisdições com tributação favorecida” ou “tax havens” na terminologia anglo-saxônica, constituem territórios caracterizados pela ausência ou pela aplicação de tributação significativamente reduzida sobre determinadas categorias de rendimentos, especialmente aqueles auferidos por não residentes. Além do aspecto fiscal propriamente dito, tais jurisdições frequentemente apresentam legislação que assegura elevado grau de sigilo quanto à titularidade de sociedades e contas bancárias, facilitam substancialmente os procedimentos de constituição e manutenção de entidades empresariais, e impõem controles cambiais mínimos ou inexistentes.

As características típicas de um paraíso fiscal incluem: (i) tributação nula ou nominal sobre rendimentos de capital; (ii) ausência de requisitos de substância econômica para sociedades locais; (iii) legislação permissiva quanto ao sigilo bancário e societário; (iv) facilidades administrativas para constituição e manutenção de empresas; (v) ausência de tratados de troca de informações fiscais ou limitada cooperação internacional; e (vi) estabilidade política e jurídica que proporcione segurança aos investimentos. Importa ressaltar que a utilização de paraísos fiscais, per se, não configura ilicitude, desde que todas as obrigações declaratórias e tributárias exigidas pela legislação do país de residência do contribuinte sejam integralmente observadas.

3.2. Lista Brasileira: Instrução Normativa RFB nº 2.265/2025

A Receita Federal do Brasil mantém lista oficial de países e dependências com tributação favorecida, bem como de regimes fiscais privilegiados, atualmente disciplinada pela Instrução Normativa RFB nº 2.265, de 13 de maio de 2025, que alterou a Instrução Normativa RFB nº 1.037/2010. O ordenamento jurídico brasileiro considera como jurisdição de tributação favorecida aquela que: (i) não tribute a renda ou a tribute à alíquota máxima inferior a 17% (dezessete por cento) – patamar reduzido pela Lei nº 14.596/2023, que anteriormente estabelecia o limite de 20%; ou (ii) cuja legislação não permita o acesso a informações relativas à composição societária de pessoas jurídicas, à sua titularidade ou à identificação do beneficiário efetivo de rendimentos.

Entre as jurisdições mais conhecidas pelos contribuintes brasileiros que constam da lista oficial, destacam-se: Ilhas Cayman, Ilhas Virgens Britânicas, Panamá, Uruguai (para determinados regimes), Bahamas, Bermudas, Liechtenstein e Mônaco. Merece destaque a recente exclusão dos Emirados Árabes Unidos da lista de jurisdições com tributação favorecida, operada pela IN RFB nº 2.265/2025, fundamentada na Lei nº 15.079/2024, que inseriu o artigo 24-C na Lei nº 9.430/1996. Este dispositivo faculta a exclusão de países da lista mediante demonstração de promoção do desenvolvimento nacional por meio de investimentos relevantes no território brasileiro e comprovação de avanços em transparência fiscal. A lista completa e atualizada encontra-se disponível para consulta no sítio eletrônico da Receita Federal do Brasil.

A classificação de uma jurisdição como paraíso fiscal ou regime privilegiado acarreta consequências tributárias significativas, incluindo: (i) aplicação de alíquota majorada de Imposto de Renda Retido na Fonte (IRRF) de 25% sobre remessas efetuadas a beneficiários residentes em tais jurisdições, em contraposição à alíquota geral de 15%; (ii) presunção de distribuição de lucros de controladas e coligadas situadas nessas jurisdições; (iii) limitações à dedutibilidade de despesas relacionadas a operações com entidades localizadas em paraísos fiscais; e (iv) sujeição a regras especiais de tributação estabelecidas pela Lei nº 14.754/2023, conforme será analisado nos artigos subsequentes desta série.

3.3. Razões Econômicas e Estratégicas

A existência e a proliferação de paraísos fiscais decorrem de estratégias deliberadas de política econômica adotadas por determinadas jurisdições, frequentemente caracterizadas por limitada disponibilidade de recursos naturais, reduzida base industrial ou posição geográfica periférica nos circuitos comerciais tradicionais. Tais territórios identificam na competição fiscal internacional um instrumento de atração de capital estrangeiro, compensando eventuais desvantagens comparativas mediante a oferta de regime tributário favorecido e estrutura regulatória flexível.

A decisão política de constituir-se como paraíso fiscal permite a essas jurisdições gerar receitas através da prestação de serviços financeiros, jurídicos e contábeis, bem como mediante a cobrança de taxas de registro e manutenção de sociedades offshore. O fenômeno da competição fiscal, embora economicamente racional da perspectiva individual de cada jurisdição, suscita preocupações no plano internacional quanto à erosão das bases tributárias dos Estados de residência dos contribuintes, à distorção da concorrência empresarial e à facilitação de práticas de evasão fiscal. Estas preocupações conduziram às iniciativas multilaterais de combate aos efeitos nocivos da competição fiscal predatória, notadamente o Projeto BEPS da OCDE, cujos fundamentos serão examinados na seção seguinte.


4. PLANEJAMENTO TRIBUTÁRIO vs. EVASÃO FISCAL

4.1. O Direito ao Planejamento Tributário

O planejamento tributário constitui direito fundamental do contribuinte, decorrente do princípio da legalidade tributária e da livre iniciativa, consagrados constitucionalmente. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal reconhece, de forma pacífica, que o contribuinte tem o direito de organizar seus negócios e estruturar seu patrimônio da maneira que lhe seja mais vantajosa do ponto de vista fiscal, desde que por meios lícitos.

A Suprema Corte dos Estados Unidos, no célebre caso Gregory v. Helvering (1935), estabeleceu o princípio de que “o direito de um contribuinte de diminuir o montante do que seria sua obrigação tributária, ou de evitá-la completamente, por meios legalmente permitidos, não pode ser questionado”. Esta doutrina, amplamente aceita em sistemas jurídicos avançados, aplica-se integralmente ao ordenamento brasileiro, onde inexiste o dever de o contribuinte escolher a alternativa que resulte em maior tributação.

Elisão Fiscal: Planejamento Legítimo

A elisão fiscal – ou economia tributária lícita – caracteriza-se pela adoção de estruturas jurídicas e operações que, embora resultem em menor tributação, são plenamente conformes ao ordenamento jurídico. O contribuinte que opta por constituir sociedade offshore para centralizar investimentos internacionais, que estabelece holding em jurisdição com regime tributário favorável para reorganização societária, ou que utiliza estruturas de trust para planejamento sucessório, exerce direito legítimo, desde que atendidas as obrigações declaratórias aplicáveis.

É fundamental ressaltar que a licitude do planejamento tributário não exige demonstração de finalidade extrafiscal preponderante. A economia tributária pode, por si só, constituir objetivo legítimo da estruturação empresarial ou patrimonial. Não se presume ilegalidade ou abuso em estruturas eficientes do ponto de vista fiscal. Sociedades holding, operações de reorganização societária, utilização de tratados para evitar dupla tributação e aproveitamento de regimes fiscais favorecidos constituem instrumentos legítimos e amplamente aceitos na prática empresarial internacional.

Evasão Fiscal: Conduta Efetivamente Ilícita

A evasão fiscal distingue-se radicalmente do planejamento tributário por caracterizar-se pela prática de atos contrários à lei, notadamente a ocultação dolosa de informações, a falsidade de documentos ou a simulação de operações inexistentes. Configura-se evasão fiscal quando há: (i) omissão intencional de rendimentos ou de patrimônio nas declarações obrigatórias; (ii) utilização de documentação falsa ou ideologicamente falsa; ou (iii) simulação absoluta, mediante a criação de operações fictícias sem qualquer correspondência com a realidade.

Importante distinguir: a mera utilização de sociedade offshore, ainda que sem empregados ou com estrutura administrativa reduzida, não caracteriza, por si só, evasão fiscal. O que define a ilicitude é a ausência de declaração ou a declaração falsa perante as autoridades fiscais brasileiras, e não a configuração específica da estrutura societária no exterior. Uma sociedade constituída como veículo de investimento, ainda que opere com estrutura administrativa simplificada (o que é comum e aceitável), desde que devidamente declarada e tributada conforme a legislação aplicável, situa-se no campo da licitude.

Elusão Fiscal: Conceito Controvertido

O conceito de elusão fiscal ou planejamento tributário abusivo permanece objeto de intenso debate doutrinário e jurisprudencial. A tentativa de estabelecer categoria intermediária entre elisão e evasão suscita preocupações quanto à segurança jurídica e ao princípio da legalidade estrita em matéria tributária.

No ordenamento brasileiro, inexiste norma geral antielisão efetivamente vigente – o parágrafo único do artigo 116 do Código Tributário Nacional nunca foi regulamentado. Consequentemente, a caracterização de abuso de forma ou de planejamento tributário abusivo depende da demonstração, pela autoridade fiscal, de simulação (absoluta ou relativa) ou de outro vício expressamente previsto na legislação civil e tributária.

A jurisprudência dos tribunais superiores tem aplicado com cautela a desconsideração de atos e negócios jurídicos, exigindo demonstração inequívoca de vícios que contaminem a validade dos atos praticados. Não basta à autoridade fiscal alegar ausência de propósito negocial ou de substância econômica; é necessário demonstrar, concretamente, a ocorrência de simulação ou de fraude à lei. A simples alegação de que determinada estrutura é “agressiva” ou “artificial” não autoriza, por si só, a desconsideração fiscal.

4.2. Critérios Práticos de Licitude

Na prática consultiva, alguns parâmetros permitem avaliar a solidez jurídica de estruturas patrimoniais e empresariais internacionais:

Transparência Declaratória: A observância integral e tempestiva das obrigações declaratórias constitui elemento essencial. Estruturas offshore devem ser declaradas na Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda, com informação completa e precisa sobre sua titularidade, patrimônio e rendimentos. A transparência perante o fisco brasileiro afasta presunções de irregularidade.

Conformidade Documental: A manutenção de documentação adequada que suporte a realidade das operações – contratos, faturas, comprovantes de pagamento, atas societárias – confere respaldo probatório à estrutura implementada. A existência de lastro documental consistente demonstra a seriedade e a legitimidade das operações.

Racionalidade Econômica: Embora não seja necessário demonstrar finalidade extrafiscal preponderante, estruturas que apresentam justificativa econômica ou patrimonial objetiva – consolidação de investimentos, facilitação de governança corporativa, proteção patrimonial, planejamento sucessório – possuem maior solidez jurídica.

Observância de Tratados: O respeito às cláusulas de tratados internacionais para evitar dupla tributação e aos padrões estabelecidos pela OCDE – particularmente em matéria de preços de transferência e de substância econômica mínima – confere legitimidade internacional à estruturação.

O essencial é compreender que o ônus da prova da ilicitude incumbe à autoridade fiscal. Presume-se a boa-fé do contribuinte e a licitude de suas estruturações, competindo ao fisco demonstrar, mediante provas concretas, a existência de simulação, fraude ou ocultação. O contribuinte que atua com transparência, que declara integralmente seu patrimônio e seus rendimentos, e que observa a legislação aplicável, exerce direito legítimo ao planejamento tributário, independentemente da complexidade ou da sofisticação das estruturas utilizadas.


5. A RESPOSTA INTERNACIONAL

5.1. Projeto BEPS da OCDE

A OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico), em resposta ao mandato do G20, desenvolveu o Projeto BEPS (Base Erosion and Profit Shifting – Erosão da Base Tributária e Transferência de Lucros), cujo pacote final de medidas foi aprovado em outubro de 2015. O projeto não tem por objetivo eliminar o planejamento tributário legítimo, mas sim estabelecer padrões mínimos de transparência e coerência nas legislações tributárias nacionais, buscando reduzir as oportunidades de dupla não-tributação decorrentes de incompatibilidades entre sistemas fiscais diversos.

O Projeto BEPS articula-se em torno de 15 ações específicas, que abrangem desde a economia digital até a resolução de disputas fiscais internacionais. Entre os standards mínimos estabelecidos – ou seja, compromissos que todos os países participantes devem implementar – destacam-se: (i) o combate a práticas fiscais prejudiciais (Action 5); (ii) a prevenção de treaty shopping e outras formas de abuso de tratados (Action 6); (iii) a exigência de country-by-country reporting para grupos multinacionais (Action 13); e (iv) o aprimoramento de mecanismos de resolução de disputas (Action 14).

Atualmente, mais de 140 países e jurisdições integram o Inclusive Framework on BEPS, comprometendo-se a implementar as medidas acordadas. Este movimento internacional representa significativa mudança no paradigma da tributação corporativa global, estabelecendo maior coordenação entre autoridades fiscais e reduzindo as assimetrias que historicamente permitiram estruturações altamente eficientes. Relevante destacar a implementação do Pillar Two, que estabelece tributação mínima global de 15% para grupos multinacionais com receita consolidada superior a EUR 750 milhões, iniciativa que entrará em vigor em diversas jurisdições a partir de 2024 e 2025.

Para contribuintes brasileiros com estruturas internacionais, o Projeto BEPS implica maior necessidade de documentação robusta, demonstração de substância econômica nas jurisdições onde sociedades estão estabelecidas, e conformidade com regras mais rigorosas de preços de transferência. Todavia, tais exigências não inviabilizam o planejamento tributário legítimo; antes, demandam maior sofisticação técnica e assessoria especializada para garantir que estruturas eficientes do ponto de vista fiscal sejam implementadas em plena conformidade com os novos standards internacionais.

5.2. Common Reporting Standard (CRS)

O Common Reporting Standard (CRS), desenvolvido pela OCDE em 2014, constitui padrão global para a troca automática de informações financeiras entre autoridades fiscais. Trata-se de evolução do modelo estabelecido pelo FATCA norte-americano (Foreign Account Tax Compliance Act), estendendo para o âmbito multilateral a prática de compartilhamento de dados bancários e financeiros de contribuintes residentes em outros países.

Atualmente, mais de 120 jurisdições comprometeram-se a implementar o CRS, incluindo o Brasil, que aderiu ao sistema mediante as Instruções Normativas RFB nº 1.680 e nº 1.681, ambas de 2016. O Brasil passou a realizar trocas automáticas de informações financeiras a partir de 2018, no âmbito da Convenção sobre Assistência Mútua Administrativa em Matéria Fiscal (Convenção Multilateral). Em 2023, a OCDE aprovou a versão atualizada do CRS (CRS 2.0), ampliando seu escopo para incluir criptoativos, moedas digitais de bancos centrais e determinados produtos financeiros eletrônicos, com implementação prevista a partir de 2026.

O CRS estabelece que instituições financeiras reportantes (bancos, corretoras, seguradoras, fundos de investimento) devem identificar contas mantidas por residentes fiscais de outras jurisdições participantes e reportar anualmente informações sobre saldos, rendimentos auferidos e movimentações. Essas informações são, então, automaticamente compartilhadas com as autoridades fiscais do país de residência do titular da conta.

Para contribuintes brasileiros, o CRS representa mudança fundamental no contexto de privacidade financeira internacional. Contas e investimentos mantidos no exterior, ainda que em jurisdições tradicionalmente conhecidas por sigilo bancário, são reportados anualmente à Receita Federal brasileira. Esta realidade demanda absoluta conformidade declaratória: todos os ativos financeiros no exterior devem ser tempestiva e integralmente declarados na Declaração de Ajuste Anual, sob pena de autuação fiscal severa quando a Receita Federal, mediante as informações recebidas via CRS, identificar divergências.

Importante ressaltar: o CRS não proíbe a manutenção de contas ou investimentos no exterior. O sistema assegura transparência, não ilegalidade. Contribuintes que declaram corretamente seus ativos internacionais, que tributam adequadamente os rendimentos auferidos e que observam as regras cambiais aplicáveis, não sofrem qualquer consequência adversa pelo fato de manterem estruturas offshore. O que o CRS combate é a omissão, não a detenção legítima de patrimônio internacional.

5.3. Transparência como Novo Paradigma

A evolução recente do sistema tributário internacional caracteriza-se pela transição de um modelo baseado em sigilo e em limitada cooperação entre autoridades fiscais para um paradigma de transparência e de troca multilateral de informações. Este movimento, impulsionado pelo Projeto BEPS e pelo CRS, reflete consenso crescente de que a tributação efetiva pressupõe acesso das autoridades fiscais a informações sobre rendimentos e ativos de seus residentes, independentemente da localização geográfica desses valores.

Paralelamente às iniciativas multilaterais, diversas jurisdições tradicionalmente utilizadas para planejamento tributário internacional implementaram reformas legislativas significativas. A Irlanda, por exemplo, encerrou em 2020 o regime do “Double Irish”, estrutura que permitia tributação reduzidíssima mediante a utilização de duas sociedades irlandesas com residências fiscais distintas. A Suíça aderiu ao CRS e flexibilizou substancialmente suas regras de sigilo bancário. Luxemburgo e Holanda introduziram requisitos de substância econômica para determinadas categorias de sociedades. Mesmo jurisdições caribenhas, como Ilhas Cayman e Ilhas Virgens Britânicas, implementaram registros públicos de beneficiários finais de sociedades (beneficial ownership registers).

Este contexto de crescente transparência não elimina as oportunidades de planejamento tributário internacional legítimo, mas altera significativamente seus parâmetros. Estruturas eficazes devem combinar eficiência fiscal com conformidade regulatória rigorosa, demonstração de substância econômica adequada e transparência plena perante as autoridades brasileiras. O segredo não é mais ativo valorizado; a conformidade documentada e a assessoria técnica qualificada constituem os pilares do planejamento patrimonial e tributário internacional contemporâneo.


6. O CENÁRIO BRASILEIRO ANTES DA LEI 14.754/2023

6.1. Regime Tributário Anterior

Até 31 de dezembro de 2023, a tributação de rendimentos auferidos no exterior por pessoas físicas residentes no Brasil regia-se primordialmente pela Lei nº 9.430/1996 e por suas sucessivas alterações. O modelo então vigente caracterizava-se pela tributação na disponibilidade econômica ou jurídica, ou seja, os lucros de entidades controladas no exterior submetiam-se à tributação no Brasil apenas quando efetivamente distribuídos aos sócios brasileiros, e não no momento de sua geração pela sociedade offshore.

Este regime de diferimento da tributação – perfeitamente lícito e expressamente previsto na legislação – permitia que contribuintes brasileiros acumulassem lucros em sociedades offshore sem que houvesse incidência imediata do Imposto de Renda no Brasil. A tributação ocorria somente quando os valores fossem distribuídos, momento em que o sócio brasileiro auferia disponibilidade econômica dos recursos. Tratava-se de sistemática tradicional, adotada por diversas jurisdições, e que respeitava o princípio fundamental de que a tributação pressupõe a efetiva percepção de renda.

Adicionalmente, o ordenamento jurídico previa duas isenções relevantes que conferiam segurança e previsibilidade ao planejamento patrimonial internacional. A primeira isenção, estabelecida pelo artigo 23 da Lei nº 9.249/1995, dispensava da tributação os ganhos de capital auferidos na alienação de bens e direitos adquiridos por pessoas físicas enquanto residentes fiscais no exterior, quando da primeira alienação após o retorno ao Brasil. A segunda isenção, prevista no artigo 26 da Lei nº 10.833/2003, excluía da tributação a variação cambial positiva verificada em bens e direitos de qualquer natureza adquiridos no exterior com recursos em moeda estrangeira.

Estas isenções possuíam racionalidade jurídica inequívoca: evitavam a tributação de ganhos formais decorrentes de valorização cambial, reconhecendo que a simples flutuação de moedas não representa acréscimo patrimonial real; e asseguravam tratamento isonômico entre brasileiros que retornavam ao país com patrimônio constituído no exterior e aqueles que sempre mantiveram residência fiscal no Brasil.

6.2. Características e Vantagens do Sistema Anterior

O regime vigente até 2023 caracterizava-se por razoável grau de previsibilidade e segurança jurídica. Contribuintes que estruturavam adequadamente suas operações internacionais, que declaravam tempestivamente suas participações em sociedades offshore e que observavam as obrigações declaratórias aplicáveis – notadamente a Declaração de Capitais Brasileiros no Exterior (CBE) e a Declaração de Ajuste Anual do Imposto de Renda – podiam planejar seus investimentos com razoável clareza quanto às consequências tributárias.

A possibilidade de diferir a tributação até o momento da distribuição efetiva conferia flexibilidade relevante para a gestão patrimonial. Investidores que mantinham sociedades offshore para consolidação de investimentos internacionais, para facilitação de operações de compra e venda de ativos, ou para planejamento sucessório, podiam reinvestir integralmente os lucros gerados, postergando a tributação brasileira para momento futuro em que houvesse efetiva necessidade de repatriação de recursos ou em que o planejamento sucessório se concretizasse.

Este sistema permitia, ademais, maior competitividade internacional para investidores brasileiros. Enquanto os lucros permanecessem aplicados no exterior, não havia incidência do Imposto de Renda brasileiro, possibilitando que investidores brasileiros competissem em condições mais próximas da paridade com investidores de outras nacionalidades. A tributação ocorria quando da distribuição, momento em que o contribuinte brasileiro efetivamente se beneficiava dos recursos, o que se alinhava ao princípio da capacidade contributiva.

6.3. Pressões para Reforma e Alegadas Ineficiências

Não obstante a racionalidade do sistema vigente até 2023, autoridades fiscais brasileiras identificaram o que caracterizaram como “lacunas” ou “oportunidades de planejamento tributário agressivo” que resultariam em perda de arrecadação. O argumento central sustentava que o diferimento indefinido da tributação, mediante a não-distribuição de lucros de sociedades offshore, equivaleria a evasão ou a elisão abusiva, privando o Estado brasileiro de receitas que, sob a ótica fiscal, já seriam devidas.

Adicionalmente, alegava-se que as isenções de ganho de capital e de variação cambial eram utilizadas em estruturações que, embora formalmente lícitas, teriam por objetivo exclusivo a redução da carga tributária, sem substância econômica real. Citavam-se exemplos de contribuintes que, antes de retornar ao Brasil, alienavam formalmente ativos a sociedades offshore por si controladas, realizando ganhos de capital isentos, e posteriormente recompravam tais ativos, elevando artificialmente o custo de aquisição para fins fiscais brasileiros.

Cumpre registrar que tais práticas, quando realizadas com transparência e em conformidade com o ordenamento então vigente, constituíam exercício legítimo de planejamento tributário, aproveitando regimes expressamente previstos em lei. A existência de isenções legais e de diferimento tributário não configurava, per se, abuso ou irregularidade. Todavia, a percepção de que o Brasil estaria perdendo receitas significativas, aliada ao movimento internacional capitaneado pelo Projeto BEPS, criou ambiente político favorável à reforma legislativa.

O debate que precedeu a aprovação da Lei 14.754/2023 envolveu discussão técnica complexa sobre os limites do planejamento tributário legítimo, a extensão do poder de tributar do Estado brasileiro em relação a rendimentos gerados no exterior, e a constitucionalidade da tributação de lucros ainda não distribuídos. De um lado, representantes da administração tributária sustentavam a necessidade de maior arrecadação e de alinhamento às tendências internacionais estabelecidas pelo Projeto BEPS da OCDE. De outro lado, contribuintes, acadêmicos e profissionais da área tributária questionavam a constitucionalidade da tributação de lucros não realizados, alertavam para potenciais violações ao princípio da capacidade contributiva e da segurança jurídica, e defendiam a legitimidade das estruturas implementadas sob a égide da legislação anterior.

A Lei 14.754/2023 foi aprovada em contexto de urgência legislativa, com debates parlamentares limitados e sem o amadurecimento técnico que a complexidade da matéria demandaria. A nova legislação institui regime de transparência fiscal para determinadas categorias de controladas no exterior, revoga isenções historicamente consolidadas e impõe obrigações e custos adicionais significativos aos contribuintes. Questões constitucionais relevantes permanecem em aberto, notadamente quanto à tributação de lucros não disponibilizados e quanto à retroatividade de determinadas disposições. A análise detalhada dessas mudanças, de suas implicações práticas, das controvérsias jurídicas suscitadas e das estratégias de adequação será objeto dos artigos subsequentes desta série.


7. A LEI 14.754/2023: OBJETIVOS DECLARADOS E MODELO ADOTADO

7.1. Contexto e Justificativas do Legislador

A Lei nº 14.754, de 12 de dezembro de 2023, foi aprovada pelo Congresso Nacional com os objetivos declarados de modernizar a legislação tributária brasileira aplicável a rendimentos auferidos no exterior, promover maior equidade entre contribuintes que mantêm investimentos domésticos e aqueles que investem internacionalmente, e alinhar o ordenamento brasileiro aos standards estabelecidos pela OCDE no âmbito do Projeto BEPS.

A Exposição de Motivos do projeto de lei que originou a norma enfatizava três fundamentos principais: (i) a necessidade de combater práticas de diferimento indefinido de tributação mediante acumulação de lucros em sociedades offshore; (ii) a alegada iniquidade resultante das isenções de ganho de capital e de variação cambial, que beneficiariam desproporcionalmente contribuintes com patrimônio no exterior; e (iii) o compromisso brasileiro, no contexto do G20 e da OCDE, de implementar medidas de transparência fiscal e de tributação efetiva sobre rendimentos onde quer que sejam gerados.

Cumpre registrar, todavia, que o processo legislativo caracterizou-se por tramitação célere, com discussões técnicas limitadas e participação restrita da comunidade acadêmica e profissional especializada. Questões fundamentais – como a constitucionalidade da tributação de lucros não disponibilizados, a compatibilidade do novo regime com tratados internacionais celebrados pelo Brasil, e os impactos econômicos sobre a competitividade internacional de investidores brasileiros – foram insuficientemente debatidas antes da aprovação da lei.

7.2. Principais Alterações Introduzidas

A Lei 14.754/2023 promove modificações estruturais no regime de tributação de rendimentos no exterior, cujos detalhes serão examinados nos artigos seguintes desta série. Em síntese, as principais inovações compreendem:

Instituição de Regime de Transparência Fiscal: A lei introduz mecanismo de antidiferimento, determinando que os lucros de entidades controladas no exterior sejam tributados no Brasil no momento de sua apuração, independentemente de distribuição efetiva ao sócio brasileiro. Este regime aplica-se a controladas situadas em paraísos fiscais ou que aufiram rendimentos predominantemente passivos (menos de 60% de rendimentos ativos). Trata-se de mudança radical em relação ao sistema anterior, instituindo tributação sobre lucros ainda não realizados do ponto de vista do contribuinte pessoa física.

Revogação de Isenções Históricas: A lei revoga tanto a isenção sobre ganhos de capital na primeira alienação após retorno ao Brasil quanto a isenção sobre variação cambial positiva. Com isso, contribuintes que adquiriram bens no exterior enquanto não residentes passam a sofrer tributação integral quando da alienação desses ativos, incluindo ganhos meramente nominais decorrentes de flutuação cambial. A revogação dessas isenções gera questionamentos quanto à observância da anterioridade tributária e à proteção de situações jurídicas consolidadas.

Regulamentação Detalhada de Trusts: A lei estabelece, pela primeira vez no ordenamento brasileiro, regime específico para tributação de estruturas de trust, definindo momentos de incidência tributária, regras de atribuição de titularidade e tratamento fiscal de distribuições. Embora o trust não seja instituto reconhecido pelo direito civil brasileiro, a lei determina sua tributação segundo regras próprias, potencialmente conflitantes com a natureza jurídica dessas estruturas em suas jurisdições de origem.

Novo Regime para Fundos de Investimento Fechados: A lei institui sistemática de tributação semestral (“come-cotas”) para fundos de investimento constituídos sob a forma de condomínio fechado, alterando significativamente o tratamento fiscal aplicável a essa categoria de investimento coletivo.

7.3. Questões Jurídicas Controvertidas

A implementação da Lei 14.754/2023 suscita controvérsias jurídicas relevantes, algumas das quais já objeto de discussão judicial:

Tributação de Lucros Não Disponibilizados: A principal controvérsia diz respeito à constitucionalidade da tributação de lucros de sociedades offshore antes de sua efetiva distribuição ao sócio brasileiro. Sustenta-se que tal tributação viola o conceito constitucional de renda, definido como acréscimo patrimonial disponível, bem como o princípio da capacidade contributiva, uma vez que o contribuinte pessoa física não aufere qualquer disponibilidade econômica ou jurídica enquanto os lucros permanecem na sociedade controlada. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal reconhece que a tributação pressupõe disponibilidade efetiva, o que fundamenta questionamentos ao regime de transparência instituído pela lei.

Observância da Anterioridade: A aplicação imediata de determinadas disposições da lei a fatos geradores ocorridos no exercício de 2024 suscita questionamentos quanto à observância do princípio da anterioridade tributária, garantia constitucional que veda a cobrança de tributos no mesmo exercício financeiro da publicação da lei que os instituiu ou aumentou. A revogação de isenções, sob determinadas interpretações, pode configurar majoração tributária sujeita à anterioridade.

Direito Adquirido e Segurança Jurídica: Contribuintes que estruturaram investimentos no exterior com base no regime anterior, confiando na estabilidade das regras então vigentes, alegam violação ao direito adquirido e à segurança jurídica. Estruturas implementadas há anos, com base em isenções expressamente previstas em lei, passam a sofrer tributação retroativa, contrariando a legítima expectativa dos contribuintes quanto à manutenção do tratamento fiscal sob o qual realizaram seus investimentos.

Compatibilidade com Tratados Internacionais: O regime de transparência fiscal pode, em determinadas situações, conflitar com tratados para evitar dupla tributação celebrados pelo Brasil, que geralmente atribuem competência tributária exclusiva ao país de residência da sociedade quanto aos lucros por ela gerados. A sobreposição de tributação brasileira sobre lucros já tributados na jurisdição da controlada, sem mecanismos adequados de creditamento, pode resultar em bitributação internacional não eliminada pelos tratados.

Essas questões jurídicas fundamentais justificam análise criteriosa e assessoria especializada para a adequada interpretação e aplicação da nova legislação, bem como para a avaliação da viabilidade e da conveniência de questionamentos judiciais em situações específicas. A complexidade técnica e as incertezas jurídicas que permeiam a Lei 14.754/2023 demandam abordagem cautelosa e planejamento estratégico cuidadoso por parte dos contribuintes e de seus assessores.


8. CONTRIBUINTES AFETADOS PELA LEI 14.754/2023

8.1. Pessoas Físicas Residentes Fiscais no Brasil

A Lei 14.754/2023 dirige-se primordialmente a pessoas físicas residentes fiscais no Brasil que mantenham ativos, investimentos ou estruturas patrimoniais no exterior. O conceito de residência fiscal, para fins da legislação tributária brasileira, determina-se pelos critérios estabelecidos na legislação do Imposto de Renda: considera-se residente no Brasil a pessoa física que aqui mantenha residência habitual ou que, encontrando-se no exterior a serviço do Brasil, não tenha apresentado comunicação de saída definitiva do país à Receita Federal.

A aplicação da nova legislação independe do valor dos ativos mantidos no exterior. Não há limite mínimo de patrimônio ou de rendimentos que exclua contribuintes da incidência das novas regras. Desde investimentos de pequena monta até estruturas patrimoniais de grande complexidade submetem-se, potencialmente, às disposições da Lei 14.754/2023, desde que preenchidos os requisitos específicos de cada modalidade de tributação instituída.

Particularmente afetados encontram-se brasileiros que retornaram ao país após período de residência no exterior e que mantêm patrimônio constituído enquanto não residentes. Estes contribuintes perdem o benefício da isenção de ganho de capital na primeira alienação e passam a ter tributados ganhos meramente nominais decorrentes de variação cambial, o que pode representar ônus tributário desproporcional em relação ao acréscimo patrimonial efetivamente auferido.

8.2. Estruturas Específicas Sujeitas ao Novo Regime

Sociedades Offshore Controladas: Pessoas físicas que detenham participação societária qualificada como “controle” em sociedades estabelecidas no exterior submetem-se potencialmente ao regime de transparência fiscal. O conceito de controle, para fins da lei, abrange tanto o controle direto quanto o indireto, e inclui situações em que a pessoa física, isoladamente ou em conjunto com pessoas vinculadas, detenha preponderância nas deliberações sociais e poder de eleger a maioria dos administradores.

O regime de transparência fiscal aplica-se quando a controlada esteja domiciliada em paraíso fiscal (jurisdição com tributação favorecida) ou quando aufira rendimentos predominantemente passivos, assim entendidos aqueles decorrentes de aplicações financeiras, royalties, aluguéis e outras fontes que não caracterizem atividade empresarial ativa. A lei estabelece o percentual de 60% como linha divisória: controladas cujos rendimentos ativos representem menos de 60% do total submetem-se à tributação por transparência.

Aplicações Financeiras Diretas: Pessoas físicas que mantenham, em seu próprio nome, aplicações financeiras no exterior – contas bancárias remuneradas, investimentos em fundos, aquisição de títulos de renda fixa, ações ou outros valores mobiliários – sujeitam-se à tributação dos rendimentos auferidos, agora sem a possibilidade de diferimento ou de aplicação das isenções revogadas. A tributação incide à alíquota de 15%, mediante recolhimento em carnê-leão até o último dia útil do mês subsequente ao do recebimento.

Trusts e Estruturas Fiduciárias: A lei estabelece tratamento específico para trusts constituídos no exterior por residentes brasileiros ou em favor de beneficiários residentes no Brasil. Define-se trust, para fins fiscais brasileiros, como relação fiduciária em que uma pessoa (trustee) detém a propriedade de bens em benefício de terceiros (beneficiários), segundo os termos estabelecidos pelo instituidor (settlor). A legislação determina momentos específicos de tributação: na constituição do trust (quando aplicável), na distribuição aos beneficiários, ou no falecimento do instituidor, conforme a natureza revogável ou irrevogável da estrutura.

Fundos de Investimento Fechados: Cotistas de fundos de investimento constituídos sob a forma de condomínio fechado sujeitam-se ao novo regime de tributação semestral (“come-cotas”), com retenção de 15% sobre o valor das cotas nos meses de maio e novembro de cada ano. Esta alteração afeta significativamente fundos de private equity, fundos imobiliários fechados e outras estruturas de investimento coletivo que anteriormente tributavam apenas no resgate ou na amortização de cotas.

8.3. Situações que Merecem Atenção Especial

Holdings Familiares Internacionais: Estruturas de holding familiar estabelecidas no exterior para fins de planejamento sucessório, proteção patrimonial ou governança corporativa requerem reavaliação criteriosa. Dependendo da jurisdição de localização, da composição de rendimentos e da estrutura de controle, podem enquadrar-se no regime de transparência fiscal, gerando tributação sobre lucros não distribuídos. A necessidade de distribuir dividendos para fazer frente à tributação brasileira pode comprometer objetivos de acumulação de capital e de reinvestimento.

Profissionais e Executivos Expatriados: Brasileiros que trabalharam no exterior, constituíram poupança em moeda estrangeira e retornaram ao Brasil enfrentam tributação integral sobre ganhos de capital e variação cambial que anteriormente seriam isentos. A alienação de imóveis adquiridos no exterior, a liquidação de investimentos financeiros ou a simples conversão de moeda estrangeira para reais pode resultar em tributação sobre ganhos nominais decorrentes de depreciação do real, sem que haja acréscimo patrimonial real.

Investidores em Mercados Financeiros Internacionais: Contribuintes que operam diretamente em bolsas de valores estrangeiras, que investem em fundos internacionais ou que mantêm portfólios diversificados globalmente devem atentar para a tributação mensal sobre rendimentos, para as regras de variação cambial e para as obrigações declaratórias ampliadas. A complexidade de cálculo e a necessidade de recolhimentos mensais impõem custos de conformidade que podem ser significativos, especialmente para investidores com operações frequentes.

Beneficiários de Trusts Estabelecidos por Terceiros: Mesmo quando o trust não tenha sido constituído pelo próprio residente brasileiro, mas este figure como beneficiário de trust estabelecido por terceiros (frequentemente parentes residentes no exterior), podem aplicar-se regras específicas de tributação. A atribuição de rendimentos e de patrimônio do trust ao beneficiário brasileiro, para fins fiscais, pode gerar tributação sobre valores sobre os quais o beneficiário não possui controle efetivo, especialmente em trusts discricionários.

A abrangência da Lei 14.754/2023 e a complexidade de suas disposições tornam indispensável avaliação individualizada de cada situação. A diversidade de estruturas patrimoniais e de investimentos mantidos por residentes brasileiros no exterior impede generalizações quanto à aplicação das novas regras. Assessoria técnica especializada revela-se essencial para determinar a extensão dos impactos da lei sobre cada contribuinte específico e para desenvolver estratégias adequadas de conformidade e, quando cabível, de reorganização patrimonial.


9. CONCLUSÃO

A compreensão adequada da Lei 14.754/2023 e de suas implicações práticas pressupõe o domínio dos conceitos fundamentais que estruturam o debate sobre tributação internacional. Conforme demonstrado ao longo deste artigo, a constituição e a manutenção de sociedades offshore, a utilização de jurisdições com tributação favorecida e o planejamento tributário internacional constituem práticas legítimas, amplamente reconhecidas pelo direito brasileiro e internacional, desde que implementadas com transparência e em conformidade com as obrigações declaratórias e tributárias aplicáveis.

O movimento internacional de transparência fiscal, capitaneado pela OCDE através do Projeto BEPS e do Common Reporting Standard, não tem por objetivo eliminar o planejamento tributário legítimo, mas sim assegurar que contribuintes tributem adequadamente os rendimentos efetivamente auferidos e que Estados tenham acesso às informações necessárias para o exercício de suas competências tributárias. O Brasil, ao promulgar a Lei 14.754/2023, insere-se neste contexto global, ainda que mediante regime que suscita questões jurídicas relevantes quanto à sua constitucionalidade, à sua compatibilidade com tratados internacionais e à observância de princípios fundamentais como a capacidade contributiva e a segurança jurídica.

A distinção entre planejamento tributário lícito e evasão fiscal permanece fundamental e não é afetada pela nova legislação. Contribuintes que declaram integralmente seu patrimônio no exterior, que observam as obrigações impostas pela legislação cambial e tributária e que estruturam seus investimentos de forma transparente exercem direito legítimo, independentemente da complexidade ou da sofisticação das estruturas utilizadas. O ônus da prova da ilicitude incumbe à autoridade fiscal, presumindo-se a boa-fé e a licitude das estruturações implementadas por contribuintes diligentes.

A Lei 14.754/2023 representa mudança legislativa significativa, impondo desafios relevantes aos contribuintes que mantêm patrimônio no exterior. A tributação de lucros não disponibilizados, a revogação de isenções historicamente consolidadas e a instituição de obrigações declaratórias ampliadas demandam reavaliação cuidadosa de estruturas existentes e planejamento estratégico quanto a novos investimentos internacionais. As controvérsias jurídicas suscitadas pela lei – particularmente quanto à constitucionalidade da tributação por transparência e à observância da anterioridade tributária – justificam análise técnica aprofundada e, em situações específicas, podem fundamentar questionamentos judiciais.

Nos artigos subsequentes desta série, examinaremos detalhadamente cada uma das alterações introduzidas pela Lei 14.754/2023: analisaremos o regime de transparência fiscal e a problemática tributação de lucros não realizados; examinaremos as consequências da revogação das isenções sobre ganho de capital e variação cambial; discutiremos as complexidades da tributação de trusts no ordenamento brasileiro; avaliaremos o novo regime para fundos de investimento fechados; e abordaremos os aspectos contábeis fundamentais, particularmente a exigência de demonstrações financeiras em padrões IFRS/CPC para apuração do lucro tributável. A compreensão técnica rigorosa dessas questões revela-se indispensável para que contribuintes e seus assessores possam navegar adequadamente pelo novo cenário tributário, conciliando eficiência fiscal com conformidade regulatória e minimização de riscos.


PRÓXIMOS ARTIGOS DA SÉRIE

Artigo 1: Lei 14.754/2023 – As Mudanças Fundamentais na Tributação de Ativos no Exterior

Artigo 2: Tributação de Lucros Não Realizados – O Regime de Transparência Fiscal e as Controvérsias Constitucionais

Artigo 3: Revogação de Isenções Históricas – Ganhos de Capital e Variação Cambial

Artigo 5: Aspectos Contábeis da Lei 14.754/2023 – A Exigência de Demonstrações em Padrões IFRS/CPC

Artigo 6: Tributação de Trusts pela Lei das Offshores – Desafios na Aplicação de Instituto Estrangeiro

Artigo 7: Fundos de Investimento Fechados – O Novo Sistema de Tributação Semestral


Este artigo tem finalidade meramente informativa e não constitui aconselhamento jurídico específico. Para orientação aplicável à sua situação particular, consulte profissional qualificado.


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