Leilão Extrajudicial de Imóvel Fiduciário: A Exigência de Descrição Atualizada como Fundamento de Validade
Introdução
A execução extrajudicial de imóvel alienado fiduciariamente representa um dos mecanismos mais eficientes de realização de garantias no ordenamento jurídico brasileiro contemporâneo. Sua celeridade e simplicidade, contudo, não dispensam rigor procedural e conformidade com os princípios que estruturam a teoria geral do processo. O Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Recurso Especial 2.167.979-PB pela Terceira Turma em setembro de 2025, consolidou jurisprudência de significativa importância para credores, devedores e profissionais do direito: a descrição do imóvel no edital de leilão extrajudicial deve corresponder à realidade material do bem no momento da execução, sob pena de nulidade da arrematação quando ocorrer venda por preço vil em consequência de descrição inadequada.
A decisão revela preocupação equilibrada com proteção patrimonial do devedor e eficiência da tutela executiva, rechaçando formalismo vazio mas afirmando que procedimentos desprovidos de rigor material produzem resultados inaceitáveis.
O Caso: A Desconsideração de Benfeitorias como Violação Procedural
A controvérsia originou-se de situação que não é incomum nos processos de execução: um devedor, após inadimplência de obrigação garantida por alienação fiduciária, viu seu imóvel levado a leilão extrajudicial. O edital, porém, descrevia o bem mediante referência apenas ao seu estado primitivo — designado simplesmente como “terreno” — sem qualquer menção às construções, ampliações e benfeitorias que haviam transformado aquela parcela de terra numa propriedade de valor consideravelmente superior.
A consequência dessa omissão foi catastrófica para o patrimônio do devedor: o imóvel foi arrematado por valor correspondente a apenas 23% de sua avaliação. Enquanto o credor recebia satisfação parcial de seu crédito, o devedor sofria prejuízo patrimonial desproporcionado, vendo seu bem alienado por fração do valor real.
Questionada a validade desse leilão mediante ação anulatória, a demanda chegou ao Superior Tribunal de Justiça, onde foi reconhecida a nulidade da arrematação.
Fundamentos Jurídicos: A Independência dos Atos de Constituição e Realização de Direitos
O tribunal assentou princípio estrutural de grande relevância: cada ato jurídico que formaliza direito real ou que viabiliza a realização coercitiva da garantia constitui unidade autônoma, com existência e validade próprias. Não existe subordinação automática entre eles.
Nessa lógica:
O contrato de mútuo — primeiro ato da cadeia — contém descrição do imóvel conforme sua situação material ao momento da constituição da garantia. Essa descrição reflete o bem tal como existia quando das negociações entre credor e devedor.
O registro da propriedade fiduciária — segundo ato — formaliza perante o sistema registral a constituição da garantia. Embora deva fazer remissão ao contrato originário, é ato registral independente que também reflete a situação do bem conforme o conhecimento do cartório naquele instante.
O edital de leilão — ato derradeiro e definitivo — não se vincula mecanicamente aos anteriores. Ao contrário: deve descrever o imóvel conforme existe no momento da execução, refletindo a realidade contemporânea do bem que será submetido a hasta pública.
O Código de Processo Civil, em seu artigo 886, inciso I, estabelece que o edital conterá “a descrição do bem penhorado, com suas características, e, tratando-se de imóvel, sua situação e suas divisas, com remissão à matrícula e aos registros”. A exigência de descrição pormenorizada visa a dois objetivos fundamentais: (1) capacitar potenciais arrematantes para formação de juízo informado sobre o bem que pretendem adquirir; (2) viabilizar liquidez adequada do ativo executado, permitindo consecução do maior valor possível em hasta pública.
O Paradoxo: Por que Descrição Incompleta Prejudica Ambas as Partes
À primeira vista, parecer-se-ia que omitir benfeitorias na descrição beneficiaria o credor — reduzindo expectativas de arrematantes quanto ao bem ofertado, portanto reduzindo também a pressão para que credor aceite oferta inferior. Essa percepção é ilusória.
Para o credor: Descrição inadequada desestimula justamente aqueles arrematantes que possuem capacidade de oferecer valor significativo. Um investidor interessado em propriedade completa e bem-acabada não oferecerá preço adequado se o edital, pela sua deficiência descritiva, não lhe transmite a real dimensão do bem. O resultado é que o crédito é satisfeito por montante inferior ao que seria alcançável com descrição correta e avaliação contemporânea.
Para o devedor: O prejuízo é manifesto e grave. Aquele que já enfrenta a execução de sua garantia vê seu patrimônio reduzido por valor que transcende ao necessário para satisfação do crédito do mutuante. A oneração excessiva decorrente de procedimento materialmente viciado representa violação ao direito fundamental de acesso ao devido processo legal.
Para a efetividade do sistema: Leilões realizados por preço vil em consequência de deficiência procedural comprometem a credibilidade do mecanismo de execução extrajudicial, gerando litigiosidade adicional e contribuindo para erosão da confiança nas garantias reais.
A Regra Consolidada: Cinco Premissas Estruturantes
O tribunal consolidou entendimento que repousa sobre cinco premissas complementares:
Primeira: A descrição no edital é ato processual autônomo, não subordinado mecanicamente à descrição contida no contrato originário ou no registro anterior. Cada qual tem função própria e deve conter informação adequada ao seu propósito específico.
Segunda: A descrição deve refletir a realidade factual e material do imóvel no momento da execução. Imóveis são bens que se modificam ao longo do tempo — edificações são construídas, melhorias são implementadas, estruturas são ampliadas. Essas transformações devem integrar a descrição do edital.
Terceira: Quando ocorrer valorização expressiva do imóvel em função de obra ou benfeitoria significativa, é obrigação do credor ou agente executor proceder à investigação atualizada do bem e refletir essas transformações na descrição do edital. Não é admissível copiar mecanicamente descrição produzida anos antes, ainda que conste de registro público.
Quarta: A omissão descritiva constitui vício de natureza material, não formal. Quando essa omissão resultar em arrematação por preço que se mostre vil em relação ao valor real do bem, a nulidade da alienação deve ser declarada.
Quinta: A proteção do devedor contra oneração excessiva é corolário do direito ao devido processo legal e ao tratamento proceduralmente equitativo, independentemente de seu status como devedor inadimplente.
Responsabilidades Procedurais do Credor e Agente Executor
A decisão impõe cadeia de responsabilidades que percorre as etapas da execução:
Na etapa preparatória: O agente executor — típica e predominantemente instituição financeira — deve realizar investigação atualizada da situação factual do imóvel, não se contentando com informações históricas constantes de registros ou contratos. Se transformações significativas ocorreram desde a constituição da garantia, elas devem ser documentadas e integradas ao processo.
Na avaliação técnica: Recomenda-se que a avaliação seja produzida em período próximo ao leilão (usualmente, não anterior a seis meses). A avaliação técnica deve ser integral, descrevendo não apenas a dimensão do terreno mas também todas as construções, benfeitorias, melhorias e características de potencial interesse aos potenciais arrematantes. A avaliação é documento fundamental que alimenta tanto a descrição do edital quanto a fixação do preço base.
Na redação do edital: A descrição deve ser minuciosa. Não basta referência genérica — “terreno de X metros quadrados localizado em determinado bairro”. É necessário constar: dimensões precisas, perímetro exato, características topográficas, construções existentes com especificação de áreas construídas, benfeitorias visíveis, estado de conservação geral, localização em relação a pontos de referência públicos reconhecíveis, características ambientais ou de localização que agreguem valor.
Na atualização registral: Se a matrícula do imóvel ainda reflete descrição antiquada, considerar a apresentação de aditamento registral que modernize o cadastro. Isso oferece publicidade adequada sobre as mudanças ocorridas no bem.
Consequências do descumprimento: Agentes executores que negligenciam esses procedimentos se expõem a (1) demandas judiciais de anulação de leilão; (2) obrigação de realização de novo leilão com custos incrementais; (3) possível condenação por perdas e danos ao devedor prejudicado; (4) comprometimento reputacional perante o mercado e o Poder Judiciário.
Direitos e Possibilidades de Defesa do Devedor
A decisão do Superior Tribunal de Justiça reconheceu direitos significativos ao devedor prejudicado:
Direito à impugnação: O devedor possui legitimidade para questionar judicialmente leilão realizado com base em descrição incompleta, desatualizada ou inadequada. Esse direito não é meramente formal — é substancial e vinculado ao direito fundamental de proteção patrimonial.
Prova e ônus probatório: Cumpre ao devedor demonstrar que a descrição estava inadequada em relação à realidade do imóvel. Evidências podem incluir: documentação fotográfica comparada, autos de avaliação anterior, registros imobiliários emitidos em momentos diversos, testemunhas que conhecem a propriedade, registros de obras ou melhorias realizadas.
Preço vil como indício: Quando a arrematação ocorre por preço significativamente inferior ao valor de mercado (como os 23% verificados no caso julgado), essa circunstância funciona como indício forte de vício procedural. Cumpre ao credor demonstrar que o preço obtido era razoável em face das características do bem — ônus que se torna praticamente impossível quando há discrepância tão significativa.
Via processual apropriada: A ação anulatória de leilão é mecanismo apropriado através do qual o devedor pode buscar não apenas a anulação da arrematação anterior, mas também determinação de que novo leilão seja realizado com descrição e avaliação corrigidas.
Equilíbrio de Interesses: O Sentido Profundo da Decisão
A decisão reflete compreensão equilibrada dos interesses em conflito. O tribunal não abdica da efetividade da tutela executiva. Ao contrário: reconhece que descrição adequada e avaliação contemporânea servem melhor aos interesses do credor, permitindo realização máxima do valor do bem e, portanto, satisfação mais completa do crédito.
Simultaneamente, protege o devedor contra prejuízo patrimonial desproporcionado. Reconhece que inadimplência justifica execução, mas não justifica execução desprovida de rigor procedural que resulte em alienação por fração do valor real.
A jurisprudência consolida assim proposição de elegante equilíbrio: conformidade procedural e proteção patrimonial não são contrapostas, mas complementares.
Conclusão: Conformidade Processual como Interesse Convergente
O acórdão REsp 2.167.979-PB consolida jurisprudência essencial: descrição desatualizada de imóvel em edital de leilão extrajudicial não constitui mera irregularidade formal e tolera impunidade. É vício processual material capaz de gerar nulidade da arrematação quando resultar em preço vil em relação ao valor real do bem.
Para credores e agentes executores, a lição é de relevância prática incontornável: investimento em procedimentos atualizados — vistoria técnica contemporânea, avaliação completa e circunstanciada, descrição pormenorizada do edital — não representa custo adicional sem contrapartida. Representa, ao contrário, proteção contra litigio custoso, invalidação de leilão, e reputacional comprometimento.
Para devedores, a decisão reafirma que direitos fundamentais de proteção patrimonial e acesso ao devido processo legal não são suspensos pelo inadimplemento. Prejudicado por descrição deficiente que resultou em preço vil, o devedor possui meios legais de reação.
O sistema de execução extrajudicial fortalece-se quando ambas as partes compreendem que descrição atualizada do bem não é detalhe procedural circunstancial ou formalismo excessivo. É, antes, fundamento material da validade e eficiência da execução — interesse convergente que protege credor, devedor e dignidade do próprio sistema de justiça.

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