Lei das Offshores: Inconstitucionalidades da Tributação de Lucros Não Distribuídos

20 de novembro de 2025

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Tributação de Lucros Não Distribuídos: Análise das Inconstitucionalidades e Distorções Práticas

Como a Lei 14.754/2023 cria fato gerador ficto e viola princípios constitucionais fundamentais


I. INTRODUÇÃO

No artigo anterior desta série, examinamos o regime instituído pela Lei 14.754/2023 para tributação de lucros apurados por controladas no exterior. Demonstramos que a nova sistemática estabelece a incidência do Imposto de Renda sobre valores que permanecem no patrimônio da pessoa jurídica controlada. Não há qualquer disponibilização ao controlador pessoa física residente no Brasil.

Analisamos os fundamentos constitucionais que regem a tributação da renda. O conceito de disponibilidade econômica ou jurídica está consolidado no artigo 43 do Código Tributário Nacional. A legislação infraconstitucional confirma esse entendimento reiteradamente. A própria Receita Federal do Brasil reconheceu essa interpretação.

A tensão entre a nova lei e os princípios basilares do sistema tributário brasileiro ficou evidente. A Constituição Federal estabelece contornos rígidos para o exercício da competência tributária da União. O núcleo semântico mínimo do conceito de renda não pode ser manipulado pelo legislador ordinário.

O lucro societário, enquanto permanecer no patrimônio da pessoa jurídica sem deliberação sobre sua destinação, não configura renda tributável do sócio pessoa física. A razão é dupla: a autonomia patrimonial que caracteriza as sociedades empresárias e a ausência de disponibilidade dos valores.

No presente artigo, avançaremos na análise da Lei das Offshores. Demonstraremos que a tributação de lucros não distribuídos não apenas colide com o conceito de disponibilidade, mas configura a criação de fato gerador artificial incompatível com a Constituição Federal. Trata-se de violação material a princípios estruturantes do sistema tributário, notadamente a capacidade contributiva e a vedação ao confisco.

Examinaremos também os problemas práticos concretos que a aplicação da nova sistemática provoca. Distorções econômicas que comprometem tanto a justiça fiscal quanto a segurança jurídica dos contribuintes. A questão transcende interpretações doutrinárias divergentes. Situa-se no plano da compatibilidade entre lei ordinária e normas constitucionais que não podem ser afastadas pelo legislador infraconstitucional.


II. A CRIAÇÃO DE UM FATO GERADOR FICTO: ANÁLISE DA INCONSTITUCIONALIDADE

A) Lucro Contábil ≠ Renda Tributável

A primeira inconstitucionalidade da sistemática instituída pela Lei 14.754/2023 reside na flagrante dissociação entre o lucro contábil apurado pela sociedade controlada e o conceito de renda tributável aplicável à pessoa física controladora.

O lucro contábil representa resultado econômico positivo apurado mediante confronto entre receitas e despesas de determinado exercício social. Esse resultado permanece registrado no patrimônio da pessoa jurídica. Integra suas reservas ou resultados acumulados, segundo critérios de competência estabelecidos pelas normas contábeis aplicáveis.

Esse lucro pode ser destinado a diversas finalidades. Distribuição como dividendos, incorporação ao capital social, constituição de reservas estatutárias ou legais, compensação de prejuízos de exercícios anteriores, ou simples manutenção para reinvestimento. A decisão cabe aos sócios. Enquanto não houver deliberação societária sobre a destinação, não se pode falar em acréscimo patrimonial para o sócio pessoa física.

Mais importante: enquanto não houver efetiva distribuição e disponibilização dos valores, a situação patrimonial do controlador permanece inalterada.

A distinção entre o patrimônio da pessoa jurídica e o patrimônio da pessoa física que nela participa constitui princípio basilar. É fundamental tanto no direito empresarial quanto no direito tributário. A sociedade possui personalidade jurídica própria. Possui patrimônio autônomo. Possui capacidade tributária distinta de seus sócios.

Os lucros por ela gerados pertencem ao seu patrimônio. Não pertencem ao patrimônio individual dos sócios enquanto não distribuídos. A participação societária confere ao sócio direitos políticos e econômicos sobre a sociedade. Não lhe transfere automaticamente a titularidade dos lucros contabilizados.

A contabilidade registra fatos econômicos segundo o regime de competência. Atribui receitas e despesas aos períodos em que ocorrem, independentemente do efetivo recebimento ou pagamento. O direito tributário opera de modo diverso. Vincula a tributação da renda à disponibilidade. Exige que o contribuinte tenha efetivamente experimentado acréscimo em seu patrimônio pessoal.

O Imposto de Renda não pode prescindir da disponibilidade. Isso está estabelecido no artigo 43 do Código Tributário Nacional. Essa norma possui status de lei complementar e vincula toda a legislação infraconstitucional.

A Lei 14.754/2023 cria artificialmente um momento de tributação divorciado da ocorrência real do fato gerador. Estabelece a incidência tributária sobre situação que não configura a materialidade constitucional do tributo. O contribuinte é compelido a reconhecer como renda própria valores que não ingressaram em seu patrimônio.

Valores sobre os quais não possui poder de disposição. Valores que podem nunca vir a integrar sua esfera jurídica. Essa ficção legal mostra-se particularmente problemática quando consideramos que o lucro contábil de determinado exercício não representa garantia de distribuição futura.

A sociedade controlada pode experimentar prejuízos subsequentes que consumam integralmente os lucros anteriormente acumulados. Pode sofrer desvalorização significativa de ativos. Pode ser afetada por alterações regulatórias que impeçam a remessa de valores ao exterior. Em qualquer dessas hipóteses, o contribuinte pessoa física terá recolhido Imposto de Renda sobre base de cálculo que jamais se converteu em efetivo acréscimo patrimonial.


B) Violação ao Princípio da Capacidade Contributiva

A violação ao princípio da capacidade contributiva apresenta-se como consequência inevitável dessa sistemática. O artigo 145, parágrafo primeiro, da Constituição Federal estabelece que sempre que possível os impostos terão caráter pessoal. Serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte.

Esse princípio possui estatura constitucional. Exige que a tributação guarde proporcionalidade com a efetiva capacidade econômica do sujeito passivo. Capacidade contributiva pressupõe disponibilidade de recursos. Existência de riqueza passível de ser parcialmente transferida ao Estado. Aptidão real para suportar o ônus tributário sem comprometimento do mínimo existencial.

Ao tributar lucros não disponibilizados, a Lei 14.754/2023 ignora completamente essa premissa. Exige que o contribuinte recolha imposto sobre valores que não estão sob seu domínio. O absurdo da situação evidencia-se quando constatamos que o contribuinte, não dispondo de outras fontes de recursos, vê-se compelido a promover a retirada de capital da controlada estrangeira.

Essa retirada ocorre especificamente para honrar obrigação tributária brasileira sobre renda que não tinha disponível. Cria-se paradoxo insustentável: a lei força a ocorrência do fato gerador cuja ausência deveria impedir a própria tributação.

O contribuinte deve retirar valores da controlada para pagar imposto sobre lucros não distribuídos. Essa retirada, ao promover a disponibilização dos recursos, configura exatamente o fato gerador que o sistema tributário anterior reconhecia como legítimo. A Lei 14.754/2023 antecipa a tributação para momento em que não há disponibilidade. Essa antecipação provoca a necessidade de disponibilização artificial dos recursos.

A situação agrava-se quando consideramos a dupla incidência tributária que pode ocorrer. Quando finalmente houver a distribuição formal dos lucros já tributados antecipadamente, embora a legislação preveja mecanismos de compensação, a complexidade desses mecanismos gera custos significativos. As diferenças de câmbio entre o momento da tributação antecipada e da distribuição efetiva, os custos de transação na remessa internacional, e as despesas com assessoria contábil e jurídica demonstram que a sistemática viola princípios constitucionais e gera ineficiências econômicas.

A lei tentou criar salvaguardas para mitigar alguns desses efeitos. O artigo 5º, parágrafo 15, prevê que a pessoa física poderá deduzir o imposto pago no exterior pela controlada. Contudo, essa dedução está limitada ao imposto devido no Brasil. Não elimina dupla tributação quando a alíquota exterior supera 15%.

O artigo 5º, parágrafo 14, permite compensação de prejuízos futuros. Mas apenas aqueles apurados a partir de 2024 e posteriores ao enquadramento como controlada. Prejuízos históricos não podem ser compensados. Essas tentativas de mitigação reconhecem implicitamente os problemas da sistemática, mas revelam-se insuficientes para saná-los.


C) O Precedente do Supremo Tribunal Federal

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou questão análoga. Ao examinar a constitucionalidade de dispositivos que pretendiam tributar sócios pelo simples fato de a sociedade ter apurado lucros, o Tribunal estabeleceu precedente relevante.

No julgamento do Recurso Extraordinário 208.526, de relatoria do Ministro Marco Aurélio, o Tribunal analisou os contornos constitucionais do Imposto de Renda. Em voto-vista proferido naquele processo, o Ministro Cezar Peluso destacou que a Constituição traz demarcação rígida dos contornos do tributo.

Enfatizou que se a lei exorbitar dos contornos estabelecidos pela competência ou incidir nas proibições veiculadas por normas constitucionais de limitação ao poder de tributar, a regra será inconstitucional. O magistrado ponderou que a repartição das competências tributárias está traçada de forma nítida no texto constitucional.

Não é lícito tomar por renda qualquer pressuposto de fato que desencadeie outras competências. O conceito possui conformação conceitual mínima que deve ser respeitada.

Esse precedente estabelece que a personalidade jurídica da sociedade e a autonomia de seu patrimônio não podem ser desconsideradas para fins de tributação dos sócios. Enquanto os lucros permanecem no patrimônio social, não há que se falar em disponibilidade econômica ou jurídica para os sócios.

A ratio decidendi daquele julgamento fundamentou-se na necessária observância do conceito de disponibilidade como requisito constitucional. Conceito que não pode ser manipulado pelo legislador ordinário mediante criação de presunções ou ficções legais. A aplicabilidade ao caso ora analisado é direta e inequívoca.


III. PROBLEMAS PRÁTICOS E DISTORÇÕES ECONÔMICAS

A) Cenários Problemáticos Concretos

A aplicação concreta da Lei 14.754/2023 revela cenários que demonstram, de forma inequívoca, a inadequação técnica e as distorções econômicas provocadas. Esses cenários não representam meras especulações teóricas. São situações reais que contribuintes brasileiros enfrentarão a partir do exercício de 2024.

Cenário 1: Lucro Contábil Seguido de Prejuízo

Pessoa física residente no Brasil controla sociedade de investimentos no exterior que apura lucro contábil de R$ 2.000.000,00 em 2024, decorrente de valorização de ativos mobiliários. O contribuinte recolhe R$ 300.000,00 de Imposto de Renda em abril de 2025. No exercício seguinte, a controlada registra prejuízo de R$ 1.500.000,00 em razão de correção de mercado. O lucro anteriormente tributado praticamente desapareceu. Embora o artigo 5º, parágrafo 14, da Lei permita compensação de prejuízos futuros, essa compensação opera apenas no plano fiscal. Não reembolsa os R$ 300.000,00 desembolsados sobre base de cálculo que deixou de existir.

Cenário 2: Descapitalização Forçada

A controlada apura lucros mas enfrenta restrições regulatórias que impedem distribuição. Ou retém recursos para reinvestimento em projetos de expansão. O contribuinte brasileiro que não dispõe de outras fontes vê-se compelido a descapitalizar a controlada especificamente para recolher o Imposto de Renda brasileiro. Essa descapitalização forçada gera custos de remessa internacional, impactos cambiais e pode constituir novo fato gerador. A operação de retirada de capital, necessária apenas para pagar tributo sobre renda não percebida, compromete a capacidade operacional da sociedade.

Cenário 3: Falecimento do Contribuinte antes da Distribuição

O cenário mais emblemático da irracionalidade do sistema manifesta-se no falecimento do contribuinte antes de qualquer distribuição efetiva dos lucros tributados. As participações societárias na controlada estrangeira integrarão o espólio. Serão transmitidas aos herdeiros mediante inventário.

Os valores correspondentes aos lucros não distribuídos farão parte da base de cálculo do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação, de competência estadual. A União terá tributado determinados valores como renda da pessoa física falecida. O Estado membro tributará esses mesmos valores como patrimônio transmitido aos herdeiros.

Economicamente, houve dupla imposição sobre a mesma manifestação de riqueza. Sem que em nenhum momento tenha havido disponibilidade econômica. A renda tributada pela União nunca ingressou no patrimônio do de cujus. Configura-se invasão de competência tributária, violação ao pacto federativo e flagrante ofensa à capacidade contributiva.


B) Impacto na Estruturação de Investimentos Internacionais

O impacto da nova sistemática na estruturação de investimentos internacionais não pode ser subestimado. Estruturas offshore legítimas, utilizadas para consolidação de investimentos familiares, planejamento sucessório internacional ou organização de participações em múltiplas jurisdições, tornam-se economicamente inviáveis.

A necessidade de elaborar demonstrações financeiras completas em padrão contábil específico representa custo significativo. Para controladas em paraísos fiscais, a lei exige obrigatoriamente BR GAAP. Para outras, permite opção entre IFRS e padrões brasileiros. Empresários brasileiros que conduzem negócios internacionais mediante estruturas de holding podem optar por reorganizações societárias que eliminem o controle direto por pessoa física. O desincentivo à manutenção de investimentos produtivos no exterior compromete a competitividade internacional.


C) A Falácia da Comparação com o “Come-Cotas”

A comparação frequentemente invocada entre a tributação de lucros não distribuídos de controladas no exterior e o regime de come-cotas aplicável aos fundos de investimento não resiste ao exame técnico. Os fundos de investimento constituem comunhões de recursos com liquidez garantida por regulamentação específica. Os cotistas não exercem controle sobre decisões de investimento. Podem resgatar suas cotas a qualquer momento. A tributação antecipada incide sobre fundos de renda fixa com previsibilidade razoável de rendimentos.

As controladas no exterior não possuem essas características. O controlador pessoa física exerce poder de decisão, define estratégias, delibera sobre distribuição de lucros e assume integralmente os riscos empresariais. A liquidez dos ativos varia enormemente. Os resultados não possuem previsibilidade. A deliberação sobre distribuir lucros constitui prerrogativa legítima que pode resultar em retenção para capitalização, pagamento de dívidas ou reinvestimento. Equiparar essas realidades distintas representa tentativa de justificar mediante analogia inadequada uma sistemática que carece de fundamento constitucional sólido.


IV. CONCLUSÃO

A análise desenvolvida demonstra que a Lei 14.754/2023 cria fato gerador artificial incompatível com a Constituição Federal. A tributação incide sobre valores que permanecem no patrimônio da pessoa jurídica controlada, sem qualquer disponibilização ao contribuinte pessoa física.

Viola-se frontalmente o conceito de renda estabelecido no artigo 43 do Código Tributário Nacional. Violam-se os limites constitucionais ao poder de tributar. O lucro contábil não se confunde com renda tributável. A autonomia patrimonial das sociedades impede que se reconheça acréscimo patrimonial ao sócio enquanto os valores não lhe forem efetivamente disponibilizados.

A violação ao princípio da capacidade contributiva revela-se particularmente grave. O contribuinte é compelido a recolher tributos sobre valores que não estão sob seu domínio. Frequentemente necessita descapitalizar a controlada para honrar obrigação tributária sobre renda não percebida. Cria-se paradoxo insustentável em que a lei força a ocorrência do fato gerador cuja ausência deveria impedir a própria tributação.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a personalidade jurídica da sociedade não pode ser desconsiderada para fins de tributação dos sócios. O conceito de disponibilidade constitui requisito constitucional inafastável.

Os cenários práticos examinados evidenciam que a sistemática provoca distorções econômicas concretas. Contribuintes que tributam lucros posteriormente dissipados não recuperam os valores desembolsados. Controladas que retêm lucros para reinvestimento legítimo são forçadas a distribuir capital. Contribuintes que falecem antes de qualquer distribuição sujeitam seus herdeiros à dupla tributação.

Embora a lei tenha tentado criar salvaguardas, estas revelam-se insuficientes. A compensação de prejuízos limita-se temporalmente. O crédito de imposto pago no exterior não elimina dupla tributação em diversos cenários. A neutralização da variação cambial é imperfeita.

No próximo e último artigo desta série, examinaremos a perspectiva governamental sobre a matéria. Analisaremos os argumentos fazendários de forma equilibrada. Identificaremos os instrumentos judiciais disponíveis aos contribuintes para questionar essas exigências. A questão situa-se no plano essencial da proteção aos direitos fundamentais dos contribuintes e da preservação dos limites constitucionais ao poder de tributar.

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Maurício Lindenmeyer Barbieri

Sócio-gerente da Barbieri Advogados. Mestre em Direito pela UFRGS. Advogado inscrito na Ordem dos Advogados da Alemanha (RAK Stuttgart), Portugal (OAB Lisboa) e Brasil (OAB/RS, DF, SC, PR, SP). Contador inscrito no CRC-RS. Membro da Associação de Juristas Brasil Alemanha.