Lei Complementar 208/2024: Protesto Extrajudicial e Securitização de Créditos Públicos
Lei Complementar 208/2024: Protesto Extrajudicial e Securitização de Créditos Públicos
Introdução
A Lei Complementar 208, publicada em 3 de julho de 2024, promoveu alterações significativas no ordenamento tributário e financeiro brasileiro. A norma modificou simultaneamente a Lei 4.320/1964 e o Código Tributário Nacional, estabelecendo três eixos principais de mudança: a autorização para securitização de créditos públicos, a inclusão do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição tributária e a ampliação das possibilidades de compartilhamento de informações pela administração tributária.
Historicamente, diversos entes federativos tentaram utilizar o protesto extrajudicial de Certidões de Dívida Ativa como instrumento para interromper o prazo prescricional. O Superior Tribunal de Justiça, contudo, firmou entendimento contrário a essa prática, reconhecendo a validade do protesto de CDA como meio de cobrança, mas negando-lhe efeito interruptivo da prescrição por ausência de previsão expressa no artigo 174 do Código Tributário Nacional. A Lei Complementar 208/2024 altera esse cenário ao modificar o inciso II do parágrafo único do artigo 174 do CTN, equiparando o protesto extrajudicial ao judicial para fins de interrupção do prazo prescricional.
A norma suscita questões relevantes quanto à sua aplicabilidade temporal, aos limites constitucionais da securitização de créditos públicos e à extensão dos poderes conferidos à administração tributária para requisitar informações. A análise dessas inovações legislativas exige compreensão integrada de suas disposições e avaliação crítica de seus potenciais efeitos sobre a segurança jurídica e o equilíbrio entre eficiência arrecadatória e direitos dos contribuintes.
Alteração do Artigo 174 do Código Tributário Nacional
O artigo 174 do Código Tributário Nacional estabelece o prazo prescricional de cinco anos para a cobrança judicial do crédito tributário, contados da data de sua constituição definitiva. O parágrafo único do dispositivo prevê as hipóteses taxativas de interrupção desse prazo. Até a publicação da Lei Complementar 208/2024, o inciso II desse parágrafo estabelecia que a prescrição se interrompia “pelo protesto judicial”, referindo-se ao procedimento cautelar regulado pelos artigos 726 a 729 do Código de Processo Civil.
A Lei Complementar 208/2024 alterou a redação do inciso II do parágrafo único do artigo 174 do CTN para estabelecer que “a prescrição se interrompe pelo protesto judicial ou extrajudicial”. A modificação legislativa responde a controvérsia que se estabeleceu após a edição da Lei 9.492/1997, que passou a permitir o protesto de títulos e outros documentos de dívida, e sua posterior alteração pela Lei 12.767/2012, que incluiu expressamente a Certidão de Dívida Ativa no rol de documentos protestáveis.
A Constituição Federal, em seu artigo 146, inciso III, alínea “b”, estabelece reserva de lei complementar para disciplinar normas gerais em matéria de prescrição e decadência tributárias. Esse fundamento constitucional impede que legislação ordinária dos entes federativos estabeleça prazos prescricionais ou causas interruptivas distintos daqueles previstos no Código Tributário Nacional. O Superior Tribunal de Justiça consolidou esse entendimento ao julgar o Tema 777 dos recursos repetitivos, reconhecendo a possibilidade de protesto extrajudicial da Certidão de Dívida Ativa como meio de cobrança, mas ressalvando expressamente que tal protesto não produzia efeito interruptivo da prescrição por ausência de previsão legal específica no Código Tributário Nacional.
A alteração promovida pela Lei Complementar 208/2024 confere às Fazendas Públicas instrumento adicional para gestão de seus créditos, permitindo que adotem medida extrajudicial menos onerosa que o ajuizamento imediato de execução fiscal. A interrupção da prescrição pelo protesto extrajudicial zera a contagem do prazo prescricional, que recomeça a fluir a partir do ato interruptivo. A norma, contudo, não estabeleceu limite para a quantidade de protestos que podem ser realizados nem regulamentou expressamente o prazo prescricional aplicável após a interrupção, questões que certamente serão objeto de controvérsia doutrinária e jurisprudencial.
Aplicabilidade Temporal da Nova Causa Interruptiva
A eficácia temporal da Lei Complementar 208/2024 constitui questão fundamental para sua correta aplicação. O artigo 4º da norma estabelece que ela entra em vigor na data de sua publicação, ocorrida em 3 de julho de 2024. Essa disposição poderia sugerir aplicabilidade imediata do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição a todos os créditos tributários existentes, independentemente da data de ocorrência do fato gerador ou de sua constituição definitiva.
O Código Tributário Nacional estabelece em seu artigo 105 que a legislação tributária aplica-se imediatamente aos fatos geradores futuros e aos pendentes. O artigo 106 do CTN, por sua vez, disciplina as hipóteses excepcionais de retroatividade da lei tributária, aplicáveis apenas quando a norma for interpretativa ou quando beneficiar o contribuinte. A Lei Complementar 208/2024 não se enquadra em nenhuma dessas hipóteses, pois introduz nova causa interruptiva da prescrição, alterando substancialmente o regime jurídico anterior.
O princípio constitucional da irretroatividade em matéria tributária, consagrado no artigo 150, inciso III, alínea “a” da Constituição Federal, constitui garantia fundamental do contribuinte. A aplicação retroativa de norma que estabelece nova causa interruptiva da prescrição violaria a segurança jurídica, permitindo que contribuintes que legitimamente aguardavam o reconhecimento da prescrição de seus débitos fossem surpreendidos pela extensão do prazo de cobrança mediante aplicação de regra inexistente quando se constituiu o crédito tributário.
A interpretação sistemática dos artigos 105 e 106 do Código Tributário Nacional conduz à conclusão de que a nova causa interruptiva da prescrição aplica-se exclusivamente aos créditos tributários originados de fatos geradores ocorridos após 3 de julho de 2024. Protestos extrajudiciais realizados antes dessa data não produzem efeito interruptivo da prescrição. Protestos realizados após essa data somente interrompem a prescrição de créditos cujos fatos geradores sejam posteriores à vigência da lei.
A delimitação temporal adequada da aplicação da norma preserva a previsibilidade das relações jurídicas e impede que contribuintes sejam prejudicados pela mudança de regras durante o curso do prazo prescricional. Embora a Lei Complementar 208/2024 não tenha estabelecido expressamente essa limitação temporal, ela decorre da aplicação dos princípios constitucionais da segurança jurídica e da irretroatividade, bem como das regras gerais de aplicação da legislação tributária previstas no próprio Código Tributário Nacional.
Securitização de Créditos Tributários e Não Tributários
A Lei Complementar 208/2024 introduziu o artigo 39-A na Lei 4.320/1964, autorizando a União, Estados, Distrito Federal e Municípios a ceder onerosamente direitos originados de créditos tributários e não tributários a pessoas jurídicas de direito privado ou a fundos de investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários. A operação caracteriza-se pela antecipação de receitas mediante a venda de direitos creditórios, usualmente com deságio, permitindo que o ente público obtenha recursos imediatos em troca de créditos de difícil ou demorada recuperação.
A norma estabelece requisitos específicos para a cessão de créditos. A operação deve preservar a natureza do crédito cedido, mantendo suas garantias e privilégios. Os critérios de atualização de valores e a segregação entre principal, juros e multas devem permanecer inalterados. A Fazenda Pública ou o órgão da administração pública conserva a prerrogativa de cobrança judicial e extrajudicial dos créditos de que se originaram os direitos cedidos. A cessão deve realizar-se mediante operação definitiva, isentando o cedente de responsabilidade ou obrigação de pagamento perante o cessionário.
O parágrafo 4º do artigo 39-A caracteriza expressamente as cessões de direitos creditórios como operação de venda definitiva de patrimônio público, excluindo-as das definições de operação de crédito previstas nos incisos III e IV do artigo 29 e no artigo 37 da Lei Complementar 101/2000. Essa qualificação jurídica visa afastar as restrições da Lei de Responsabilidade Fiscal aplicáveis às operações de crédito, conferindo maior flexibilidade aos entes federativos para realizar a securitização de seus créditos.
A preservação das vinculações constitucionais, contudo, merece análise criteriosa. O parágrafo 2º do artigo 39-A estabelece que a cessão de direitos creditórios preservará a base de cálculo das vinculações constitucionais no exercício financeiro em que o contribuinte efetuar o pagamento. Essa disposição cria situação peculiar: o ente público recebe antecipadamente, com deságio, recursos correspondentes a créditos tributários cujas vinculações constitucionais a despesas com saúde e educação somente serão computadas quando e se o contribuinte originalmente devedor efetuar o pagamento ao cessionário. A norma pode, na prática, comprometer recursos destinados constitucionalmente a áreas essenciais.
A Lei Complementar estabelece ainda vedações às instituições financeiras controladas pelo ente federado cedente, proibindo-as de participar de operação de aquisição primária dos direitos creditórios, de adquirir ou negociar esses direitos em mercado secundário, ou de realizar operação lastreada ou garantida pelos direitos creditórios do ente controlador. Essas vedações visam prevenir conflitos de interesse e operações que possam configurar financiamento indireto do ente público por instituição sob seu controle.
Ampliação do Compartilhamento de Informações
O artigo 3º da Lei Complementar 208/2024 acrescentou os parágrafos 4º e 5º ao artigo 198 do Código Tributário Nacional, ampliando as possibilidades de requisição e compartilhamento de informações pela administração tributária. O parágrafo 4º autoriza a administração tributária a requisitar de quaisquer entidades ou órgãos públicos ou privados que operem cadastros ou controlem operações de bens e direitos as informações cadastrais e patrimoniais necessárias ao exercício de suas funções institucionais.
A ampliação dos poderes de requisição de informações articula-se com os demais objetivos da Lei Complementar 208/2024. A securitização de créditos públicos exige avaliação adequada do potencial de recuperação dos créditos cedidos, o que demanda acesso amplo a informações sobre o patrimônio e a capacidade de pagamento dos devedores. O protesto extrajudicial, por sua vez, ganha efetividade quando precedido de localização de bens do devedor, facilitada pelo acesso a informações patrimoniais abrangentes.
A norma estabelece que as cessões de direitos creditórios tributários são consideradas atividades da administração tributária, não se aplicando a vedação do inciso IV do artigo 167 da Constituição Federal quanto à vinculação de receita de impostos. Essa qualificação permite que a administração tributária utilize seus poderes de investigação e requisição de informações também para viabilizar as operações de securitização, integrando os três eixos de mudança promovidos pela Lei Complementar em um sistema coordenado de gestão de créditos públicos.
Perspectivas de Litígios e Controvérsias
A Lei Complementar 208/2024 estabelece novo marco regulatório que certamente será objeto de intenso debate doutrinário e litígios judiciais nos próximos anos. A questão da aplicabilidade temporal da nova causa interruptiva da prescrição constitui o ponto de maior controvérsia imediata. Fazendas Públicas tenderão a sustentar a aplicabilidade imediata do protesto extrajudicial a todos os créditos existentes, enquanto contribuintes invocarão o princípio da irretroatividade e a necessidade de respeito à segurança jurídica. A definição dessa controvérsia pelos tribunais superiores será determinante para a efetiva extensão dos efeitos da norma.
A ausência de limitação expressa quanto ao número de protestos que podem ser realizados suscita preocupação quanto à possível eternização de créditos tributários. A interrupção sucessiva da prescrição mediante protestos reiterados poderia, na prática, tornar imprescritíveis créditos que a Constituição Federal e o Código Tributário Nacional submetem a prazo prescricional definido. A jurisprudência deverá estabelecer parâmetros de razoabilidade para evitar abusos na utilização do instrumento.
A securitização de créditos públicos enfrentará questionamentos quanto à sua verdadeira natureza jurídica. A caracterização dessas operações como venda definitiva de patrimônio público, e não como operação de crédito, será objeto de escrutínio pelos Tribunais de Contas e pelo Poder Judiciário. A potencial violação das vinculações constitucionais de receitas tributárias a despesas com saúde e educação poderá fundamentar ações de inconstitucionalidade e ações civis públicas questionando operações de securitização que comprometam recursos destinados a áreas essenciais.
A ampliação dos poderes de requisição de informações pela administração tributária, embora justificável pela necessidade de maior eficiência na gestão de créditos públicos, deverá ser exercida com respeito aos limites constitucionais de proteção à privacidade e aos dados pessoais. A Lei Geral de Proteção de Dados estabelece princípios e requisitos para o tratamento de informações pessoais que devem ser observados mesmo quando a requisição é realizada por autoridade fiscal no exercício de suas competências legais.
Considerações Finais
A Lei Complementar 208/2024 representa iniciativa legislativa abrangente destinada a modernizar os instrumentos de gestão de créditos públicos e ampliar a eficiência arrecadatória. As três frentes de mudança introduzidas pela norma – protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição, securitização de créditos e ampliação do compartilhamento de informações – articulam-se em um sistema integrado que confere às Fazendas Públicas ferramentas adicionais para recuperação de créditos tributários e não tributários.
A efetiva dimensão dos efeitos da norma, contudo, dependerá fundamentalmente da interpretação que lhe será conferida pelos tribunais, especialmente quanto à sua aplicabilidade temporal. A preservação da segurança jurídica e do equilíbrio entre eficiência arrecadatória e direitos dos contribuintes exige que a aplicação da lei respeite os princípios constitucionais da irretroatividade e da proteção da confiança legítima. Contribuintes que aguardavam legitimamente o reconhecimento da prescrição de seus débitos não podem ser surpreendidos pela aplicação retroativa de norma que altera substancialmente o regime prescricional.
A Barbieri Advogados acompanha atentamente os desdobramentos da aplicação da Lei Complementar 208/2024 e permanece à disposição para orientar seus clientes quanto às estratégias mais adequadas de gestão de passivos tributários e análise de operações de securitização de créditos públicos no contexto do novo marco regulatório.
