Lei 14.754/2023: A Criação de um Fato Gerador Fictício na Tributação de Controladas no Exterior

15 de novembro de 2025

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Lei 14.754/2023: A Criação de um Fato Gerador Fictício na Tributação de Controladas no Exterior

Introdução: A Ruptura com o Regime de Caixa

O Brasil sempre teve uma regra clara: pessoa física paga imposto quando recebe o dinheiro. Simples. Lógico. Justo.

A Lei 14.754/2023 destruiu essa lógica.

Em seu artigo 5º, §10, inciso III, a nova lei estabeleceu algo inédito em nossa história tributária: pessoas físicas devem pagar imposto sobre lucros de empresas no exterior “em 31 de dezembro do ano em que forem apurados no balanço, independentemente de qualquer deliberação acerca da sua distribuição“.

Leia novamente. Independentemente de distribuição.

O legislador brasileiro decidiu que não importa se você jamais verá esse dinheiro. Não importa se a empresa quebrará amanhã. Não importa se outros sócios bloquearão dividendos. Não importa se regulações estrangeiras impedirão remessas. Se apareceu lucro no balanço de dezembro, você paga imposto em abril.

É Kafka escrevendo direito tributário.

Por décadas, a Lei 7.713/1988 protegeu o contribuinte pessoa física com uma premissa basilar: só há imposto sobre rendimentos percebidos. O dinheiro precisa chegar. O depósito precisa cair. A disponibilidade precisa existir.

Agora, sob o pretexto de combater offshores, inventou-se uma nova categoria tributária: o imposto sobre o talvez. A tributação da esperança. A exação sobre o que poderia ser mas ainda não é – e talvez nunca seja.

Alberto Xavier tinha um nome para isso: ficção temporal do fato gerador. É considerar ocorrido algo que não ocorreu. É tributar o futuro incerto como se fosse passado consumado. É cobrar sobre o ovo imposto de galinha.

A mudança não é sutil. É revolucionária – no pior sentido possível. Pela primeira vez, o Brasil tributa pessoas físicas sobre lucros que pertencem a outras pessoas jurídicas, que existem apenas como lançamentos contábeis, que dormem em balanços de empresas luxemburguesas, cayman, panamenhas.

É a materialização do impossível jurídico. E está em vigor.

O Conceito de Disponibilidade no Direito Tributário

O artigo 43 do Código Tributário Nacional estabelece o alicerce conceitual do imposto de renda no Brasil: o fato gerador é a aquisição da disponibilidade econômica ou jurídica de renda ou proventos. Não é a mera existência de renda em algum lugar do universo econômico, mas sua efetiva disponibilidade para o contribuinte.

Hugo de Brito Machado esclarece com precisão didática: “A disponibilidade econômica decorre do recebimento do valor que se vem a acrescentar ao patrimônio do contribuinte. Já a disponibilidade jurídica decorre do simples crédito desse valor, do qual o contribuinte passa a juridicamente dispor, embora este não lhe esteja ainda nas mãos.”

Note-se: mesmo na disponibilidade jurídica – a mais ampla das duas hipóteses – exige-se que o contribuinte possa juridicamente dispor do valor. Não basta a mera expectativa, a possibilidade remota ou a esperança de um dia receber. É necessário um direito atual, certo e exigível.

Luís Eduardo Schoueri aprofunda: “a renda estará disponível a partir do momento em que o contribuinte possa dela se valer para pagar o seu imposto. Em outras palavras, há disponibilidade quando o beneficiário desta pode, segundo seu entendimento, empregar os recursos para a destinação que lhe aprouver, inclusive para pagar os impostos.”

Ora, o lucro meramente escriturado no balanço de uma sociedade controlada no exterior não atende a nenhum desses requisitos. O contribuinte pessoa física não pode sacar esses valores. Não pode utilizá-los. Não pode, ironicamente, sequer usá-los para pagar o imposto que a Lei 14.754/2023 pretende cobrar sobre eles.

A Receita Federal, em sua Solução de Consulta Interna COSIT nº 6/2021, reconheceu expressamente: “o fato gerador do IRPF ocorre quando os rendimentos e ganhos são percebidos (disponibilidade econômica) pelo contribuinte, considerado como tal aquele da entrega de recursos pela fonte pagadora“.

Onde está a entrega de recursos quando o lucro permanece retido na sociedade controlada? Onde está a disponibilidade quando o contribuinte precisaria de deliberação societária, distribuição formal e, muitas vezes, autorização regulatória estrangeira para acessar tais valores?

A Ficção Jurídica Criada pela Lei

A Lei 14.754/2023 realiza uma operação impossível: converte lucro contábil alheio em renda tributável própria. Como se o legislador, munido de uma varinha mágica tributária, pudesse transformar números em um balanço estrangeiro em acréscimo patrimonial de um brasileiro.

O problema não é sutil – é fundamental.

Luís Eduardo Schoueri ilumina a questão: “O imposto de renda não pode prescindir da disponibilidade, à luz do mandamento do art. 43 do Código Tributário Nacional.” A contabilidade registra; o direito tributário exige mais. Entre o registro e a realização existe um universo de possibilidades, contingências e impossibilidades.

Imagine: uma controlada em Luxemburgo apura lucro em dezembro. O balanço registra números positivos. Mas o que significam esses números para o controlador brasileiro? São cifras em papel – ou melhor, bytes em um servidor. Não são dinheiro em conta. Não são dividendos declarados. Não são, em suma, renda.

Antes que esses lucros se transformem em renda do controlador, precisariam atravessar uma complexa jornada jurídica: deliberação societária, observância de acordos de acionistas, cumprimento de regulações locais, retenção de impostos estrangeiros, conversão cambial, remessa internacional. Cada etapa, uma contingência. Cada passo, uma incerteza.

A lei ignora toda essa realidade.

Alberto Xavier captou a essência do problema com precisão cirúrgica: a lei não pode “definir que o fato gerador já se produziu quando sua produção ainda não teve início ou pode nunca chegar a verificar-se.”

Mas é exatamente essa impossibilidade lógica que a Lei 14.754/2023 abraça. Tributa o potencial, não o real. A expectativa, não o direito. A esperança matemática, não o acréscimo patrimonial.

Pior: ao estabelecer a tributação “independentemente de qualquer deliberação acerca da distribuição”, a lei rasga o véu da personalidade jurídica sem processo, sem fraude, sem justificativa. Trata sociedade e sócio como se fossem um só – uma heresia jurídica que dois mil anos de direito romano nos ensinaram a repudiar.

O legislador brasileiro criou, assim, um imposto sobre ficções. Um tributo que incide não sobre fatos, mas sobre possibilidades. Uma exação que cobra não pelo que aconteceu, mas pelo que poderia, talvez, quem sabe, acontecer.

Violação à Capacidade Contributiva

O princípio da capacidade contributiva não é mera diretriz programática – é comando constitucional. O artigo 145, §1º, da Constituição ordena que os impostos sejam graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte. Não a capacidade imaginária. Não a capacidade futura. A capacidade real.

A Lei 14.754/2023 subverte completamente esse mandamento.

Como pode haver capacidade contributiva sobre lucros que dormem em balanços estrangeiros? Como extrair tributo de uma riqueza que existe apenas como lançamento contábil em livros de uma sociedade luxemburguesa, panamenha ou cayman?

O absurdo revela-se em sua crueldade prática.

O contribuinte, para pagar imposto sobre esse lucro fantasma, precisa realizar um ato econômico surreal: liquidar investimentos reais para pagar tributo sobre ganho virtual. Vender o que tem para pagar imposto sobre o que não tem. É Kafka encontrando o direito tributário.

Schoueri capturou essa perversidade com clareza cristalina: “A renda estará disponível a partir do momento em que o contribuinte possa dela se valer para pagar o seu imposto.” Mas como pagar imposto com lucros presos em uma sociedade estrangeira? Como converter papel em dinheiro sem o ato jurídico da distribuição?

A resposta da Lei 14.754/2023 é de uma simplicidade brutal: liquide seus ativos.

Cria-se, assim, um círculo vicioso tributário. A lei força o contribuinte a gerar o fato gerador que ela própria antecipou. Obriga-o a realizar a distribuição para pagar o imposto sobre a distribuição não realizada. É a serpente tributária devorando a própria cauda.

Pior ainda: e se a sociedade controlada, após apurar o lucro, sofrer perdas? E se decisões de investimento consumirem os recursos? E se crises econômicas evaporarem os resultados? O contribuinte terá pago imposto sobre uma renda que não apenas não recebeu – mas que deixou de existir.

Não há capacidade contributiva quando o contribuinte é onerado sobre expectativas. Não há justiça fiscal quando se tributa o impossível. Não há constitucionalidade quando a lei ignora a diferença entre potência e ato, entre esperança e realidade, entre o que poderia ser e o que efetivamente é.

A Lei 14.754/2023 não tributa renda. Tributa miragens.

A Falsa Analogia com o “Come-Cotas”

Durante os debates legislativos, defensores da Lei 14.754/2023 invocaram repetidamente o sistema “come-cotas” como precedente. “Já fazemos isso com fundos de investimento”, argumentavam. “É a mesma coisa”, insistiam.

Não é. E a diferença é abissal.

O come-cotas brasileiro foi desenhado para uma realidade específica: fundos de investimento em renda fixa, operando em uma economia onde o governo garante rentabilidade positiva através de juros estratosféricos. É um sistema construído sobre certezas, não probabilidades.

Quando o fundo aplica em títulos públicos que rendem 13% ao ano, o cotista sabe que haverá rendimento. Quando investe em CDBs pós-fixados atrelados ao CDI, a remuneração é matematicamente garantida. O come-cotas antecipa um ganho certo, apenas ainda não materializado. É como cobrar imposto sobre o salário no dia 30, sabendo que o pagamento virá no dia 1º.

Controladas no exterior habitam outro universo.

Uma sociedade em Luxemburgo pode lucrar este ano e quebrar no próximo. Uma empresa nas Ilhas Virgens pode reinvestir todo lucro em expansão. Uma holding em Cingapura pode estar impedida contratualmente de distribuir dividendos por anos. São entidades reais, com riscos reais, operando em economias reais onde nada é garantido.

A base governamental, ao equiparar as situações, cometeu uma falácia elementar. É como comparar a certeza do nascer do sol com a possibilidade de ganhar na loteria. Ambos são eventos futuros, mas apenas um é certo.

Mais revelador ainda: o próprio sistema brasileiro reconhece a diferença. Fundos de ações não têm come-cotas. Por quê? Porque podem ter prejuízo. Fundos imobiliários só são tributados na distribuição efetiva. Por quê? Porque o resultado é incerto.

A Lei 14.754/2023 ignora essa sabedoria acumulada.

Pega o modelo criado para a previsibilidade da renda fixa brasileira e o transplanta, sem adaptação ou reflexão, para o caos criativo do capitalismo global. Aplica a lógica dos títulos públicos brasileiros a startups em Delaware, fábricas em Xangai, holdings em Amsterdã.

É o erro categorial elevado a política tributária. É comparar laranjas não com maçãs, mas com a ideia platônica de fruta. É tributar não o come-cotas, mas o talvez-nunca-coma.

O legislador brasileiro, na ânsia arrecadatória, esqueceu uma verdade simples: nem toda antecipação é legítima, nem toda analogia é válida.

Lei 14.794

O Precedente do STF

O Supremo Tribunal Federal já enfrentou esta questão. E foi categórico.

Ao julgar a inconstitucionalidade de dispositivo da Lei 7.713/1989, o Plenário da Corte estabeleceu uma verdade jurídica elementar: “o mero auferimento de lucros pela sociedade não implica automático auferimento de renda pelos sócios”.

A decisão não foi casual. Foi o reconhecimento de um princípio basilar do direito societário moderno: sociedade e sócio são pessoas distintas. Patrimônios distintos. Realidades jurídicas distintas. O lucro da empresa não é, nunca foi, jamais será automaticamente renda do sócio.

A Lei 14.754/2023 pretende revogar essa lógica por decreto.

Mas o STF foi além. Reconheceu que entre o lucro social e a renda pessoal existe um ato jurídico necessário e insubstituível: a distribuição. Sem ela, o lucro é número em balanço. Com ela, torna-se acréscimo patrimonial.

É a diferença entre potência e ato. Entre o ovo e a galinha. Entre a semente e a árvore.

O precedente não deixa margem para interpretações criativas. Quando o Supremo afirma que lucro empresarial não é automaticamente renda do sócio, está dizendo algo mais profundo: está afirmando que o direito não pode ignorar suas próprias categorias fundamentais.

Uma controlada em Luxemburgo tem personalidade jurídica própria. Seus lucros são seus, não do controlador. Seu patrimônio é autônomo, não extensão do patrimônio brasileiro. Suas decisões empresariais – inclusive a de não distribuir lucros – são legítimas e soberanas.

A Lei 14.754/2023 atropela tudo isso.

Cria uma presunção absoluta onde o STF viu distinção necessária. Impõe identidade onde a Corte reconheceu alteridade. Tributa como certo o que o Supremo declarou contingente.

Não é apenas má técnica legislativa. É confronto direto com a jurisprudência constitucional. É o legislador ordinário desafiando o entendimento consolidado do guardião da Constituição.

O histórico do STF em matéria tributária sugere que, quando provocado, a Corte reafirmará seus precedentes. A coerência jurisprudencial e a força dos princípios constitucionais apontam para a provável declaração de inconstitucionalidade dessa sistemática de tributação.

A segurança jurídica exige que o Judiciário restabeleça os limites violados.

A Assimetria com Pessoas Jurídicas

A Lei 14.754/2023 conseguiu criar um paradoxo tributário único: pessoas físicas, tributadas pelo regime de caixa, devem antecipar imposto sobre lucros não distribuídos. Pessoas jurídicas, tributadas pelo regime de competência, podem diferir a tributação da variação cambial até sua efetiva realização.

A inversão é kafkiana.

Empresas brasileiras com controladas no exterior – submetidas ao regime de competência, onde receitas são reconhecidas quando auferidas – têm o direito de postergar o reconhecimento da variação cambial. Podem esperar. Podem planejar. Podem avaliar o momento oportuno.

Pessoas físicas – historicamente protegidas pelo regime de caixa, onde só há tributação mediante percepção efetiva – são forçadas a antecipar tributo sobre lucro alheio, não distribuído, talvez jamais distribuível.

É o mundo tributário de cabeça para baixo.

A legislação do imposto de renda das pessoas jurídicas reconhece uma verdade econômica: variações cambiais não realizadas são voláteis, reversíveis, ilusórias. Por isso permite o diferimento. Por isso exige a realização. Por isso respeita a substância sobre a forma.

Mas a mesma lógica é negada às pessoas físicas.

O contribuinte individual, teoricamente merecedor de maior proteção do ordenamento jurídico, recebe tratamento mais gravoso que a grande corporação. O pequeno investidor com participação em sociedade uruguaia é mais onerado que a multinacional brasileira com subsidiárias em Delaware.

Onde está a isonomia? Onde está a equidade? Onde está a racionalidade mínima que se espera do sistema tributário?

A resposta é constrangedora: não há.

A Lei 14.754/2023 criou duas classes de contribuintes com investimentos no exterior. Para uns, a sofisticação do diferimento e o respeito à realidade econômica. Para outros, a brutalidade da tributação antecipada e a ficção jurídica.

Não há princípio de política fiscal que justifique essa discriminação. Não há teoria jurídica que a sustente. Não há lógica econômica que a explique.

O que há é uma distorção sistemática que expõe a verdadeira natureza da Lei 14.754/2023: uma medida arrecadatória açodada, que atropela princípios em nome da conveniência fiscal, que sacrifica coerência por caixa imediato.

O sistema tributário brasileiro merece melhor. O contribuinte certamente merece.

Conclusão: A Inevitável Correção Judicial

A Lei 14.754/2023, ao estabelecer a tributação de lucros não distribuídos de controladas no exterior, ultrapassou os limites constitucionais da competência tributária da União. Não se trata de mero erro técnico ou imperfeição legislativa. É violação frontal aos princípios estruturantes do sistema tributário nacional.

Os vícios são múltiplos e insanáveis.

Viola-se o conceito constitucional de renda, tributando-se expectativa como se fosse direito adquirido. Ignora-se o artigo 43 do CTN, cobrando-se imposto sem disponibilidade econômica ou jurídica. Desrespeita-se a capacidade contributiva, onerando-se o contribuinte sobre riqueza inacessível.

A tentativa de criar analogia com o sistema come-cotas revela incompreensão profunda sobre a natureza dos investimentos internacionais. A contradição com o tratamento dado às pessoas jurídicas expõe a irracionalidade da escolha legislativa. O confronto com a jurisprudência do STF anuncia o destino judicial da norma.

Mas o problema transcende a técnica jurídica.

A Lei 14.754/2023 representa um momento preocupante em nossa evolução tributária. É a vitória da arrecadação sobre a racionalidade, da conveniência sobre a constitucionalidade, da ficção sobre a realidade. É o direito tributário perdendo sua âncora na capacidade contributiva real e navegando nas águas turvas da tributação potencial.

O Poder Judiciário será chamado a intervir.

Não por ativismo, mas por dever constitucional. Não por preferência política, mas por imperativo jurídico. Os princípios violados são tão fundamentais, as distorções criadas são tão evidentes, que a correção judicial surge não como possibilidade, mas como necessidade institucional.

Até que essa correção ocorra, milhares de contribuintes serão submetidos a uma exação que desafia a lógica e a justiça. Serão forçados a liquidar patrimônio real para pagar tributo sobre lucro virtual. Serão punidos por investir legitimamente no exterior, como se o mero controle societário internacional fosse, em si, ato suspeito merecedor de tributação punitiva.

O direito tributário brasileiro construiu, ao longo de décadas, um sistema sofisticado baseado em princípios sólidos. A Lei 14.754/2023 representa um retrocesso nessa construção. Cabe ao Judiciário, guardião desses princípios, restaurar a integridade do sistema.

A inconstitucionalidade é manifesta.

Maurício Lindenmeyer Barbieri é sócio da Barbieri Advogados. Advogado inscrito na OAB/RS 36.798, OAB/DF 24.037, OAB/SC 61.179-A, OAB/PR 101.305, OAB/SP 521.298, Ordem dos Advogados de Portugal – Lisboa nº 64443L e Ordem dos Advogados da Alemanha – RAK Stuttgart nº 50.159. Contador com registro no CRC-RS 106371/O. Mestre em Direito pela UFRGS.