Fiscalização Tributária e Investigação Criminal Simultâneas: Estratégias de Defesa Integrada

24 de outubro de 2025

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Introdução à Fiscalização Tributária e Investigação Criminal | Barbieri Advogados

Por Caio Cesar da Silva Oliveira

Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Advogado inscrito na OAB sob o nº 132.362. Advogado da Barbieri Advogados.

Análise da independência entre esferas administrativa e penal após a decisão do STJ e estratégias de defesa coordenada

Tempo de leitura: 12 minutos


Este artigo integra série sobre Crimes Tributários e Estratégias de Defesa Empresarial. Leia também:

  • Artigo 1: Possível Configuração de Crime Tributário Antes do Encerramento do Procedimento Fiscal: A Nova Interpretação do STJ

  • Artigo 2: Pagamento ou Parcelamento do Débito Tributário: Estratégias para Extinguir ou Suspender a Punibilidade Penal

  • Artigo 3: Prescrição Antecipada em Crimes Tributários: O Que o Empresário Precisa Saber Sobre o Prazo do Fisco

  • Artigo 4: Crimes Tributários em Operações de Alto Volume: Riscos e Estratégias para Varejo, E-commerce e Serviços


I. Introdução: O Desafio da Simultaneidade Processual e o Novo Paradigma Jurídico

O empresário brasileiro enfrenta complexidade jurídica crescente na gestão fiscal e conformidade legal. Esta série de artigos demonstrou como a recente mudança jurisprudencial do STJ alterou substancialmente o cenário de crimes tributários: antecipou a configuração do delito, modificou o marco inicial da prescrição e amplificou os riscos para operações de alto volume transacional.

Além dessas transformações, a nova interpretação produziu consequência adicional de enorme impacto prático: a possibilidade de atuação simultânea e independente das esferas administrativa e penal. Tradicionalmente, irregularidades tributárias geravam processo administrativo fiscal e, somente após seu esgotamento, a esfera criminal poderia ser acionada. Esse sequenciamento oferecia ao empresário tempo para regularização ou defesa administrativa antes de qualquer acusação criminal.

A decisão do STJ sobre o crime formal de falha documental rompeu essa dinâmica. O Estado pode agora atuar de forma independente e paralela: enquanto a fiscalização tributária apura o débito administrativamente, o Ministério Público pode, simultaneamente, investigar e processar criminalmente os mesmos fatos. Este artigo analisa essa nova realidade e apresenta estratégias de defesa integrada para proteção eficaz do empresário.

II. O Poder Punitivo Estatal e a Tradicional Separação de Esferas

O poder punitivo estatal abrange sanções administrativas (multas, restrições) e penais (privação de liberdade), visando assegurar a conformidade, especialmente com as leis tributárias.

Tradicionalmente, a relação entre as esferas administrativa e penal para crimes tributários seguia o princípio da subsidiariedade. A Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal estabelecia que “não se tipifica crime contra a ordem tributária, previsto no art. 1º, incisos I a IV, da Lei nº 8.137/90, antes do lançamento definitivo do tributo”. Para o empresário, essa súmula era uma salvaguarda: a ação penal só começava após a conclusão do processo administrativo fiscal e a constituição definitiva do crédito tributário. Isso permitia discutir o débito na esfera administrativa, oferecendo defesa e regularização antes da acusação criminal, criando um caminho mais previsível na gestão de riscos.

III. A Nova Interpretação do STJ: Catalisador da Ação Criminal Antecipada

Conforme detalhado no primeiro artigo desta série, a Súmula Vinculante nº 24 do Supremo Tribunal Federal estabelecia que crimes tributários materiais (Art. 1º, I a IV, da Lei nº 8.137/1990) não se tipificavam antes da constituição definitiva do crédito tributário, concedendo ao empresário período para defesa e regularização administrativa.

Essa sistemática criava sequenciamento processual previsível: primeiro, o empresário defendia-se administrativamente perante a Receita Federal; esgotada a via administrativa com a constituição definitiva do crédito, apenas então poderia haver persecução criminal. Esse modelo concedia tempo valioso para discussão técnica do débito, regularização fiscal e, eventualmente, preparação de defesa criminal com pleno conhecimento dos fatos apurados pela autoridade fiscal.

A decisão crucial do STJ focou no crime de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, relativa a venda de mercadoria ou prestação de serviço, efetivamente realizada, ou fornecê-la em desacordo com a legislação”, tipificado no artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.137, de 1990. Antes, a praxe era aguardar o fim da discussão administrativa mesmo para essa conduta.

O STJ qualificou este delito como um crime formal. Para o empresário, isso implica que um crime formal se consuma com a mera prática da conduta descrita na lei, independentemente da produção de um resultado material. No caso, a simples omissão ou emissão irregular da nota fiscal já configura o ilícito penal. Isso difere dos crimes materiais (como supressão de tributos), que exigem a efetiva lesão ao erário.

A consequência mais impactante é a inaplicabilidade da Súmula Vinculante nº 24 a este tipo penal. Como o crime se consuma com a conduta formal, o lançamento definitivo do tributo pela autoridade fiscal não é mais necessário. A barreira processual que condicionava a ação penal ao esgotamento da via administrativa para outros crimes tributários não existe para infrações relacionadas à emissão de notas fiscais.

Assim, a nova interpretação do STJ reconhece substancial independência entre as esferas administrativa e penal para condutas do artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.137, de 1990. O Ministério Público pode iniciar investigações criminais e oferecido denúncias por falhas na emissão de notas fiscais, sem aguardar a constituição definitiva do crédito tributário. O impacto é que a investigação criminal pode preceder ou correr paralelamente ao procedimento fiscal, expondo o empresário a duas frentes de apuração simultaneamente. Essa antecipação da ação criminal exige uma redefinição das estratégias de prevenção e defesa.

IV. A Frente Administrativa: Fiscalização Tributária

A fiscalização tributária é a primeira e mais comum interação do empresário com o controle estatal. Seu objetivo é verificar a conformidade fiscal das operações e, se houver irregularidades, constituir o crédito tributário. Este processo é administrativo, focado na arrecadação e aplicação de penalidades fiscais.

Os instrumentos incluem auditorias e inspeções, que podem levar à lavratura de um Auto de Infração. Este documento detalha as irregularidades, tributos não recolhidos e multas propostas. O empresário pode apresentar defesa, impugnando as conclusões do Fisco perante órgãos como as Delegacias de Julgamento da Receita Federal (DRJ) e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF).

As sanções administrativas são pecuniárias, cobrando tributo devido, juros de mora e multas. Embora expressivas, não resultam em privação de liberdade, limitando-se ao âmbito financeiro e patrimonial da empresa. A esfera administrativa oferece opções de regularização, como pagamento integral ou parcelamento do débito. Essas medidas podem mitigar ou afastar o interesse do Estado na persecução criminal em certos tipos de crimes tributários. A gestão estratégica da frente administrativa é, portanto, crucial.

V. A Frente Penal: Investigação Criminal

Em contraste com a esfera administrativa, a investigação criminal apura indícios de crimes contra a ordem tributária e busca a responsabilização penal dos envolvidos. Esta frente é distinta da fiscalização e pode acarretar consequências severas, incluindo a privação de liberdade.

Os procedimentos penais iniciam-se, geralmente, com um inquérito policial ou investigação do Ministério Público, visando coletar provas do crime e autoria. Havendo elementos suficientes, o Ministério Público oferece a denúncia, iniciando o processo criminal, onde o empresário se torna réu.

O dolo (intenção) é um pilar inafastável na tipificação penal. Para criminalização por delito tributário, não basta a mera irregularidade; é indispensável comprovar a intenção de fraudar o Fisco ou praticar a conduta criminosa. A ausência de dolo – por erro, interpretação razoável da legislação ou desconhecimento escusável – é um argumento fundamental para a defesa penal, distinguindo infração administrativa de crime.

O artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.137, de 1990, ganha relevância como gatilho para a atuação penal independente. Com a nova interpretação do STJ, a simples conduta de “negar ou deixar de fornecer, quando obrigatório, nota fiscal ou documento equivalente, […] ou fornecê-la em desacordo com a legislação” já consuma o crime. Assim, constatada essa falha formal, a investigação criminal pode ser instaurada e progredir sem a necessidade de aguardar o lançamento definitivo do tributo na esfera administrativa, expondo o empresário a uma ação penal mais rápida e direta.

VI. Estratégias de Defesa Integrada: Navegando com Segurança nas Duas Frentes

A atuação simultânea da fiscalização tributária e da investigação criminal impõe ao empresário o complexo desafio de gerenciar processos em duas frentes distintas, com regras, prazos e consequências próprias. Essa duplicidade exige uma abordagem estratégica e coordenada, pois decisões em uma esfera podem ter impactos significativos na outra.

Medidas preventivas robustas são essenciais. O fortalecimento de programas de compliance e controles internos fiscais é crucial para evitar evasão tributária e falhas formais, como as do artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.137/90, que podem desencadear ações criminais. Controles eficientes na emissão, recebimento e guarda de documentos fiscais, auditorias e treinamentos demonstram boa-fé e diligência.

Quando a fiscalização ou investigação já se iniciaram, as medidas reativas são vitais:

A. Defesa Administrativa Estratégica com Visão das Implicações Penais

A defesa administrativa não deve focar apenas na anulação do auto de infração. Deve ser construída com a consciência de que cada argumento, documento e testemunho pode ser usado em um processo criminal. Evitar admissões de culpa precipitadas e contestar os fatos e a interpretação legal do Fisco de forma consistente constrói uma base sólida para a defesa penal.

B. Ação na Esfera Penal Considerando os Aspectos de Regularização Tributária (Pagamento/Parcelamento)

A regularização do débito tributário pode influenciar a esfera penal. A Lei nº 10.684, de 2003, artigo 9º, § 2º, prevê a extinção da punibilidade dos crimes tributários com o pagamento integral do tributo e acessórios. O parcelamento do débito (Art. 9º, caput) pode suspender a pretensão punitiva. A decisão de pagar ou parcelar é estratégica, envolvendo análise de risco-benefício frente ao impacto financeiro e a possibilidade de encerrar a persecução criminal.

C. Demonstração da Ausência de Dolo na Defesa Criminal

Documentos de compliance, registros de treinamento, relatórios de auditoria interna e provas de complexidade interpretativa da norma são cruciais para comprovar que a conduta, se irregular, resultou de erro, falha operacional ou interpretação legítima, e não da intenção de fraudar.

D. Gestão da Comunicação e da Prova em Ambas as Esferas

Manter comunicação consistente e gestão unificada das provas é fundamental. A narrativa na esfera administrativa deve ser harmônica com a penal, evitando contradições. Cada documento, declaração e argumento deve ser avaliado por uma equipe jurídica integrada, garantindo defesa coesa e eficaz em ambos os planos.

Conclusão: Blindagem Estratégica como Garantia da Atividade Empresarial

A coexistência da fiscalização tributária e da investigação criminal, exacerbada pela nova interpretação do STJ sobre o crime de “negar ou deixar de fornecer nota fiscal” (artigo 1º, inciso V, da Lei nº 8.137/90), revela riscos ampliados para o empresário. A independência entre as esferas administrativa e penal é uma realidade operacional que deflagra ações simultâneas, com consequências jurídicas distintas, expondo a empresa e seus administradores a pressões significativas.

Inegavelmente, a proatividade e a estratégia jurídica integrada são cruciais. Não basta a preocupação com a regularidade fiscal; o empresário precisa estar preparado para defender seus interesses em um contexto onde a presunção de dolo pode ser mais facilmente aventada pelas autoridades. A distinção entre erro operacional e conduta criminosa depende cada vez mais da capacidade de demonstrar a ausência de intenção fraudulenta por meio de sistemas de controle, políticas internas e correta gestão da informação.

A blindagem estratégica da atividade empresarial, neste cenário, não é um luxo, mas uma necessidade imperativa. Isso se traduz em investimento contínuo em programas de compliance fiscal, revisão constante dos processos internos de emissão e controle de documentos e uma postura ativa na gestão de eventuais passivos tributários. A capacidade de articular uma defesa coesa e consistente, que dialogue com as especificidades de cada esfera – fiscal e penal – é a garantia da proteção eficaz dos interesses do empresário.


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