Emenda Constitucional 136/2025: A Institucionalização do Calote Estatal
A Articulação Perversa Entre Poderes Contra Milhões de Credores
Com a aprovação da Emenda Constitucional 136/25, tramitação açodada, marcada pela sistemática dispensa de prazos regimentais e votações em regime de urgência, a medida representa a mais eloquente demonstração da articulação perversa entre Executivo e Legislativo quando o objetivo é subverter direitos constitucionalmente assegurados.
O projeto não constitui mero ajuste técnico nas finanças públicas, como cinicamente apresentado por seus defensores. Trata-se, em essência, da transformação de uma obrigação constitucional em letra morta, da metamorfose de direitos líquidos e certos em promessas etéreas, da transmutação de decisões judiciais definitivas em meras sugestões que o poder público pode acatar ou ignorar conforme sua conveniência fiscal.
O Sistema Escalonado da Indignidade
A engenharia financeira proposta pela Emenda Constitucional 136/2025 revela sua natureza predatória na minúcia de seus percentuais. O sistema escalonado estabelece que entes federativos com estoque de precatórios até 15% da receita corrente líquida desembolsarão apenas 1% anualmente. Esta proporção ascende gradualmente: 1,5% para estoques entre 15% e 25%; 2% entre 25% e 35%; 2,5% entre 35% e 45%; 3% entre 45% e 55%; 3,5% entre 55% e 65%; 4% entre 65% e 75%; 4,5% entre 75% e 85%; e finalmente 5% para estoques superiores a 85% da receita corrente líquida.
A perversidade matemática torna-se cristalina quando confrontada com a realidade dos números. O estoque nacional atual de precatórios estaduais e municipais totaliza R$ 193 bilhões, distribuídos em R$ 110,4 bilhões dos estados e R$ 82,9 bilhões dos municípios. Sob a égide da Emenda Constitucional 136, projeções técnicas indicam crescimento exponencial para R$ 883 bilhões até 2035 – expansão superior a 350% que evidencia a completa inadequação dos percentuais propostos.
Mesmo a alíquota máxima de 5% revela-se grotescamente insuficiente diante da entrada contínua de novos precatórios no sistema. A matemática elementar demonstra que, mantido tal ritmo de pagamento, estados e municípios jamais conseguirão quitar seus passivos judiciais, transformando dívidas que deveriam ser temporárias em fardos perpétuos – verdadeiro castigo de Sísifo imposto aos credores do Estado brasileiro.
As Inconstitucionalidades Flagrantes
A Nota Técnica elaborada pela Ordem dos Advogados do Brasil, referendada por todos os presidentes das seccionais estaduais, constitui documento de singular importância jurídica ao sistematizar as violações constitucionais perpetradas pela Emenda Constitucional 136. O parecer identifica afronta direta a três cláusulas pétreas fundamentais: a coisa julgada, a separação de poderes e o direito de propriedade.
A violação à coisa julgada materializa-se quando a Emenda Constitucional 136/25 permite que o poder público simplesmente desconsidere decisões judiciais transitadas em julgado, limitando seu cumprimento à capacidade fiscal autodeclarada do devedor. Como assinalam os juristas Egon Bockmann Moreira e Rodrigo Kanayama em parecer técnico, “a PEC nº 66/2023 viola direitos fundamentais dos credores atuais e das futuras gerações, que herdarão um passivo crescente e sem horizonte de quitação”.
O princípio da separação de poderes resta igualmente conspurcado quando o Executivo assume prerrogativa de estabelecer unilateralmente os termos de cumprimento de determinações judiciais. A Emenda Constitucional 136/2025 inverte a lógica constitucional: em vez de o Judiciário determinar o pagamento e o Executivo cumprir, este último passa a ditar os limites de sua própria obediência às decisões judiciais.
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou reiteradamente sobre tentativas similares de protelar o pagamento de precatórios. Na ADI 4357, que analisou o regime especial instituído pela EC 62/2009, a Corte foi categórica: “o precatório não é uma faculdade, mas uma obrigação constitucional de pagamento de dívidas decorrentes de condenação judicial transitada em julgado”. O voto condutor enfatizou que a dilação temporal excessiva configura “calote disfarçado por parte do Estado”.
Mais recentemente, nas ADIs 7064 e 7047, o Supremo declarou inconstitucionais dispositivos das Emendas Constitucionais 113 e 114 que limitavam pagamentos de precatórios da União, reafirmando sua jurisprudência contrária a mecanismos que perpetuam indefinidamente o pagamento de dívidas judiciais.
O Caso Emblemático do Rio Grande do Sul
A situação do Rio Grande do Sul oferece paradigma eloquente dos efeitos deletérios da Emenda Constitucional 136. O estado possui atualmente estoque de aproximadamente R$ 16 bilhões em precatórios, representando 26,7% de sua receita corrente líquida de R$ 60 bilhões. Em 2024, o Rio Grande do Sul bateu recorde histórico ao pagar R$ 2,7 bilhões em precatórios – montante equivalente a 4,5% de sua receita corrente líquida.
Sob a Emenda Constitucional 136/2025 o estado seria compulsoriamente reduzido ao pagamento de apenas 2% da receita corrente líquida, ou R$ 1,2 bilhão anuais. A redução brutal de R$ 1,5 bilhão representa corte de 55% nos desembolsos. Paradoxalmente, um estado que vinha acelerando sistematicamente o pagamento de precatórios, estabelecendo marcos históricos de quitação, seria forçado a regredir drasticamente, transformando os R$ 16 bilhões atuais em dívida de crescimento perpétuo.
A Cumplicidade Legislativa
O processo de tramitação da PEC 66/2023, originária da Emenda Constitucional 136/2025 revela a extensão da articulação entre os poderes na perpetração desta agressão aos direitos fundamentais. A proposta percorreu o Congresso Nacional sob regime de urgência artificialmente criado, com sucessivas dispensas de prazos regimentais na Câmara dos Deputados e votação no Senado no dia imediato ao seu recebimento.
Tal celeridade não decorre de urgência republicana legítima, mas da necessidade de evitar o escrutínio público mais detido que invariavelmente exporia a natureza confiscatória da medida. Como observou o presidente da Comissão Nacional de Estudos Constitucionais da OAB, Marcus Vinícius Furtado Coêlho, “a proposta, ao limitar arbitrariamente os pagamentos e instituir uma dívida impagável, transforma o direito reconhecido judicialmente em um crédito simbólico”.
As Consequências Socioeconômicas
A Emenda Constitucional 136/2025 não afeta apenas números abstratos em planilhas orçamentárias. Sua aprovação condenará milhões de credores do poder público – cidadãos, empresas, entidades – a aguardar indefinidamente pela materialização de direitos judicialmente reconhecidos. São servidores públicos com diferenças salariais devidas, aposentados com proventos atrasados, empresas com indenizações por desapropriações, vítimas de responsabilidade civil estatal.
A alteração na correção monetária – de Selic para IPCA acrescido de 2% ao ano – representa confisco adicional. Enquanto a Selic atual de 15% ao ano oferece correção adequada, o novo sistema resultará em atualização de aproximadamente 7% anuais. O Estado brasileiro, inadimplente contumaz, ainda se permite o luxo de pagar juros inferiores àqueles que qualquer cidadão pagaria em operações bancárias ordinárias.
A perpetuação oficial da inadimplência estatal corrói a segurança jurídica que deveria nortear todas as relações em sociedade civilizada. Quando o próprio Estado se constitui em caloteiro institucional, toda a economia ressente-se da desconfiança generalizada. Contratos perdem eficácia, investimentos são postergados, e o tecido social deteriora-se pela certeza de que nem mesmo decisões judiciais definitivas merecem cumprimento integral.
O Imperativo da Resistência
A Emenda Constitucional 136/2025 representa marco divisório na história constitucional brasileira: ou a sociedade civil organizada impede sua consumação, ou assistiremos à transmutação definitiva do Estado Democrático de Direito em mero simulacro retórico. A Ordem dos Advogados do Brasil já sinaliza o ingresso de Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal, com pedido cautelar de suspensão imediata da norma.
Contudo, a resistência não pode limitar-se aos canais institucionais. É imperioso que credores, advogados, entidades da sociedade civil e todos aqueles comprometidos com a manutenção do Estado de Direito mobilizem-se para expor publicamente a natureza confiscatória desta medida. A opinião pública deve compreender que não se trata de mero ajuste técnico-orçamentário, mas da liquidação programada de direitos constitucionalmente assegurados.
O Brasil encontra-se diante de encruzilhada histórica. De um lado, a tentação autoritária de transformar o Estado em entidade irresponsável, imune às consequências de seus atos e omissões. De outro, a possibilidade de preservar os fundamentos republicanos que distinguem uma democracia constitucional de uma autocracia disfarçada.
A escolha é nossa. E ela será feita agora.
Maurício Lindenmeyer Barbieri. Advogado
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