CNIB na Execução Civil: Do REsp 2.141.068/PR ao Provimento 320/2024
CNIB na Execução Civil: Do REsp 2.141.068/PR ao Provimento 320/2024
Introdução
A recente decisão unânime da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 2.141.068/PR representa marco definitivo na expansão do uso da Central Nacional de Indisponibilidade de Bens (CNIB) para execuções cíveis. O caso, envolvendo instituição financeira e empresa em recuperação judicial, consolidou entendimento que vinha sendo construído pelas Turmas da Segunda Seção, especialmente após a declaração de constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC pelo Supremo Tribunal Federal.
Paralelamente a essa evolução jurisprudencial, o Conselho Nacional de Justiça promulgou o Provimento 320/2024, modernizando completamente a estrutura normativa da CNIB após dez anos de vigência do Provimento 39/2014. As mudanças trazem impactos significativos para a prática advocatícia, especialmente no contencioso empresarial e na consultoria para transações imobiliárias.
Este artigo analisa a convergência entre a consolidação jurisprudencial e a atualização regulamentar, oferecendo perspectiva prática sobre as implicações dessas mudanças para credores, devedores e profissionais do direito.
A Consolidação Jurisprudencial: Fundamentos e Alcance
O Caso Paradigmático
No REsp 2.141.068/PR, a Ministra Nancy Andrighi conduziu análise técnica que estabeleceu parâmetros claros para utilização da CNIB em execuções entre particulares. O caso apresentava complexidade adicional: uma das empresas executadas encontrava-se em recuperação judicial, situação que não impediu a aplicação da medida constritiva, dado que o crédito executado não estava sujeito aos efeitos recuperacionais.
A relatora destacou que a possibilidade de utilização da CNIB nas demandas cíveis decorre de dois fundamentos principais: primeiro, a declaração de constitucionalidade do artigo 139, IV, do CPC pelo STF na ADI 5.941/DF; segundo, os princípios da efetividade jurisdicional consagrados nos artigos 4º e 6º do Código de Processo Civil. Essa fundamentação dupla confere solidez jurídica à expansão do uso da ferramenta para além de sua concepção original tributária.
Súmula 560/STJ como Protocolo Mandatório
A Súmula 560 do STJ estabelece roteiro procedimental claro: “A decretação da indisponibilidade de bens e direitos, na forma do art. 185-A do CTN, pressupõe o exaurimento das diligências na busca por bens penhoráveis, o qual fica caracterizado quando infrutíferos o pedido de constrição sobre ativos financeiros e a expedição de ofícios aos registros públicos do domicílio do executado, ao Denatran ou Detran.”
No caso analisado pelo STJ, o tribunal verificou meticulosamente o cumprimento desses requisitos. As tentativas via SisbaJud resultaram infrutíferas, o sistema RenaJud não localizou veículos, e as consultas aos registros imobiliários não encontraram bens em nome dos executados. Somente após esse esgotamento sequencial é que se deferiu o cadastramento na CNIB.
Essa sequência não é meramente sugestiva, mas obrigatória. O STJ tem sido rigoroso na exigência de demonstração do esgotamento dos meios típicos, rejeitando recursos quando não comprovado o cumprimento integral do protocolo estabelecido pela Súmula. Para o advogado do credor, isso significa que a petição requerendo CNIB deve documentar detalhadamente cada diligência prévia realizada, com indicação precisa dos resultados negativos obtidos.
Subsidiariedade e Proporcionalidade
O acórdão reforça princípio fundamental: a CNIB constitui medida executiva atípica, admissível somente quando exauridos os meios executivos típicos. Essa subsidiariedade não viola os princípios da razoabilidade, proporcionalidade ou menor onerosidade do devedor, conforme estabelecido no REsp 1.963.178/SP, também citado como precedente.
A Ministra Nancy Andrighi enfatizou que a existência de anotação na CNIB não impede a lavratura de escritura pública representativa de negócio jurídico relativo a imóvel. A medida exerce papel de instrumento de publicidade do ato de indisponibilidade, permitindo que as partes sejam alertadas sobre a restrição existente, sem inviabilizar completamente a circulação de riquezas.
O Novo Marco Regulatório: Provimento 320/2024
Transferência Institucional e Modernização Tecnológica
O Provimento 320/2024 promove mudança estrutural significativa ao transferir a administração da CNIB para o Operador Nacional do Sistema de Registro Eletrônico de Imóveis (ONR). Essa transferência não é meramente administrativa, mas representa integração sistêmica com o SERP (Sistema Eletrônico de Registros Públicos), permitindo interoperabilidade ampla entre diferentes plataformas registrais.
A modernização tecnológica materializa-se na previsão de APIs (Application Programming Interface) para comunicação automatizada entre sistemas. Serventias que implementarem essa integração ficam dispensadas da verificação diária manual, pois as ordens de indisponibilidade serão processadas automaticamente. Para escritórios que atuam em volume significativo de execuções, essa automatização representa ganho substancial de eficiência.
O artigo 320-E estabelece mudança radical: todas as ordens de indisponibilidade e cancelamento devem ser encaminhadas exclusivamente via CNIB, vedando-se mandados físicos, ofícios, malotes digitais ou mensagens eletrônicas. Essa exclusividade elimina divergências procedimentais entre diferentes juízos e garante rastreabilidade completa das ordens expedidas.
Inovações Procedimentais de Impacto Imediato
O novo provimento institui dever de consulta diária obrigatória para registradores de imóveis (artigo 320-I), que devem verificar a existência de novas ordens e prenotar aquelas relativas a imóveis de sua circunscrição. Essa obrigação aumenta drasticamente a efetividade do sistema, reduzindo o intervalo temporal entre a determinação judicial e a efetiva averbação da indisponibilidade.
Inovação particularmente interessante surge no artigo 320-K: proprietários podem indicar preventivamente imóveis sobre os quais preferem que recaiam eventuais ordens de indisponibilidade. Embora não vincule autoridades judiciárias, essa faculdade permite estratégia de proteção patrimonial, especialmente para empresários com patrimônio diversificado que desejem proteger determinados ativos essenciais à atividade empresarial.
Para notários, o artigo 320-F estabelece obrigação de consulta ao banco de dados da CNIB no desempenho de suas atividades, com necessidade de consignação do resultado no ato notarial. A existência de ordem não impede lavratura de escritura, mas exige cientificação expressa das partes, criando dever de informação qualificada.
Questões Complexas na Aplicação Prática
CNIB e Recuperação Judicial
O recurso especial em análise ilustra questão recorrente: a aplicabilidade da CNIB quando o devedor está em recuperação judicial. O tribunal, em decisão mantida pelo STJ, observou que créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial permitem o prosseguimento da execução individual.
Essa análise casuística é fundamental. Créditos extraconcursais, aqueles constituídos após o pedido de recuperação, ou excluídos legalmente dos efeitos recuperacionais (como garantias fiduciárias em determinadas circunstâncias), permitem prosseguimento da execução individual e, consequentemente, utilização da CNIB. Por outro lado, créditos concursais sujeitos ao plano de recuperação não autorizam medidas constritivas individuais durante o stay period.
Para advocacia empresarial, isso demanda análise cuidadosa da natureza do crédito e momento de sua constituição antes de requerer medidas constritivas contra empresa em recuperação. Erro nessa avaliação pode gerar não apenas indeferimento do pedido, mas potencial responsabilização por litigância temerária.
Regime Econômico e Distribuição de Custos
O Provimento 320/2024 esclarece controvérsia anterior sobre custos. O artigo 320-C estabelece que ordens de cancelamento devem indicar se a parte é beneficiária da justiça gratuita, hipótese em que a averbação do cancelamento será realizada sem ônus. Caso contrário, os emolumentos da indisponibilidade e seu cancelamento são pagos conjuntamente pelo interessado que solicitar o levantamento.
Essa sistemática cria incentivo econômico para composição: o devedor que negocia acordo arca com custos menores do que aquele que aguarda hasta pública, quando deverá suportar emolumentos acumulados. Para instituições financeiras e grandes credores, essa dinâmica pode influenciar estratégias de cobrança e propensão a acordos.
O acesso ao sistema apresenta estrutura de custos diferenciada: gratuito para autoridades, notários, registradores e consultas do próprio interessado sobre cadastramentos em seu nome (mediante certificado digital); oneroso para terceiros e entidades de proteção ao crédito. Essa gradação reflete política de transparência seletiva, facilitando verificações oficiais enquanto restringe consultas meramente especulativas.
Situações Especiais e Limites do Sistema
Aquisições Supervenientes e Títulos Prenotados
O artigo 320-J do novo provimento estabelece que, havendo aquisição de imóvel por pessoa com indisponibilidade decretada, o registrador deve, imediatamente após o registro aquisitivo, promover averbação da indisponibilidade, inclusive em contratos com alienação fiduciária. Essa averbação automática é realizada independentemente de consulta prévia ao adquirente, criando situação de constrição instantânea.
Questão mais complexa surge com títulos prenotados. Segundo o artigo 320-I, §3º, a superveniência de ordem de indisponibilidade impede registro de títulos anteriormente prenotados, salvo determinação judicial contrária. Essa previsão pode gerar situações delicadas em transações complexas com múltiplas etapas, exigindo atenção redobrada ao timing dos atos registrais.
Operações Imobiliárias Administrativas
Significativo avanço trazido pelo artigo 320-H permite que retificações administrativas, unificações, desmembramentos e procedimentos de REURB prossigam independentemente de autorização da autoridade que decretou a indisponibilidade. A constrição é automaticamente transportada para as novas matrículas, com comunicação posterior ao juízo.
Essa flexibilização reconhece que tais procedimentos não implicam alienação ou oneração patrimonial, mas mera reorganização registral. Para incorporadores e loteadores, essa previsão elimina entraves burocráticos que poderiam paralisar empreendimentos por questões formais.
Proporcionalidade e Limites Valorativos
O sistema mantém princípio de proporcionalidade ao estabelecer que a indisponibilidade limita-se ao valor total exigível. Compete ao juiz determinar levantamento imediato da indisponibilidade sobre bens ou valores excedentes. Essa limitação valorativa exige do credor indicação precisa do montante devido, incluindo principal, juros, correção e honorários, sob pena de caracterização de excesso de execução.
Questão sensível permanece quanto a bens impenhoráveis. A averbação ocorre independentemente da natureza do imóvel, cabendo ao devedor pleitear judicialmente o reconhecimento da impenhorabilidade. Até decisão judicial, a indisponibilidade permanece averbada, podendo gerar constrangimentos em tentativas de refinanciamento ou regularização de bem de família.
Impactos na Segurança Jurídica das Transações
A universalização da CNIB para execuções cíveis amplia significativamente o universo de indisponibilidades potenciais. Se antes apenas débitos tributários geravam esse tipo de constrição prévia, agora qualquer execução civil pode resultar em bloqueio registral. Para o mercado imobiliário, isso implica necessidade de due diligence mais rigorosa, com verificação não apenas de certidões tradicionais, mas análise ampla da situação patrimonial e litigiosa dos alienantes.
Instituições financeiras precisam revisar políticas de concessão de crédito imobiliário, considerando que indisponibilidades supervenientes podem afetar garantias. O sistema de indicação preferencial do artigo 320-K pode tornar-se ferramenta de negociação, com devedores indicando imóveis específicos para preservar outros ativos essenciais à continuidade empresarial.
Para advocacia consultiva, surge necessidade de orientação preventiva sobre estruturação patrimonial considerando possibilidade ampliada de indisponibilidades. Holdings familiares, trustes e outras estruturas de proteção patrimonial ganham relevância renovada nesse contexto.
Considerações Finais
A convergência entre a jurisprudência consolidada no REsp 2.141.068/PR e as inovações do Provimento 320/2024 estabelece novo paradigma para a execução civil no Brasil. A CNIB transcende definitivamente sua origem tributária para tornar-se ferramenta universal de efetividade jurisdicional.
O equilíbrio alcançado entre efetividade executiva e garantias processuais demonstra maturidade do sistema jurídico brasileiro. A exigência de subsidiariedade, materializada na Súmula 560/STJ, protege devedores contra constrições prematuras. Simultaneamente, a modernização tecnológica e integração sistêmica ampliam o alcance e velocidade das medidas constritivas quando legitimamente deferidas.
Para profissionais do direito, o momento exige atualização técnica e adaptação procedimental. O sucesso na utilização dessas ferramentas depende do conhecimento preciso dos requisitos jurisprudenciais e domínio das funcionalidades tecnológicas introduzidas. A transição do analógico para o digital não é apenas mudança de meio, mas transformação profunda na própria concepção da prática executiva.
O precedente fixado pelo STJ permanecerá como referência não apenas pela questão decidida, mas por demonstrar que mesmo situações complexas, envolvendo recuperação judicial e pluralidade de devedores, encontram solução adequada no novo marco regulatório. A segurança jurídica não deriva da imutabilidade das normas, mas de sua evolução consistente e fundamentada, como exemplificado nessa confluência entre jurisprudência e regulamentação administrativa.
