Análise Técnica do RE 1.366.243/SC: STF Define Novas Regras para Fornecimento de Medicamentos pelo SUS

09 de junho de 2025

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Material desenvolvido pela equipe de contencioso da Barbieri Advogados | Publicado em junho de 2025 | Última atualização: junho de 2025

Resumo Executivo: O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 1.366.243/SC (Tema 1234), estabeleceu novas diretrizes para ações judiciais de fornecimento de medicamentos não incorporados no SUS, definindo critérios de competência baseados no custo anual do tratamento, regras de custeio entre entes federativos e obrigações administrativas prévias ao ajuizamento.


1. Competência e Legitimidade Passiva nas Ações de Medicamentos

1.1 O Critério dos 210 Salários Mínimos para Competência Federal

O Supremo Tribunal Federal definiu critérios objetivos de competência para ações judiciais de fornecimento de medicamentos não incorporados no SUS, introduzindo um threshold financeiro que representa mudança paradigmática na distribuição de competências. Ficou estabelecido que demandas envolvendo medicamento não incorporado ao SUS, mas registrado na Anvisa, devem tramitar na Justiça Federal quando o custo anual do tratamento for igual ou superior a 210 salários-mínimos, com base no Preço Máximo de Venda ao Governo (PMVG) fixado pela Câmara de Regulação do Mercado de Medicamentos – CMED. Nesses casos de alto custo, a União deve figurar obrigatoriamente no polo passivo da ação, atraindo a competência federal nos termos do art. 109, I, da Constituição.

A tese principal sobre competência estabelece que “para fins de fixação de competência, as demandas relativas a medicamentos não incorporados na política pública do SUS, mas com registro na ANVISA, tramitarão perante a Justiça Federal, nos termos do art. 109, I, da Constituição Federal, quando o valor do tratamento anual específico do fármaco ou do princípio ativo for igual ou superior ao valor de 210 salários mínimos, na forma do art. 292 do CPC”.

1.2 Competência da Justiça Estadual para Casos de Menor Valor

Para ações cujo custo anual fique abaixo de 210 salários-mínimos, permanece a competência da Justiça Estadual, envolvendo em regra Estados e/ou Municípios como réus. O acórdão ressalvou, todavia, que o juízo estadual, se apenas um ente federativo estiver no polo passivo, pode incluir o outro “para possibilitar o cumprimento efetivo da decisão”, sem que isso implique repasse do ônus financeiro a este ente adicional. Busca-se assim garantir a efetividade da ordem judicial incluindo outro ente federado apenas para viabilizar a execução, mantendo-se a responsabilidade financeira conforme as regras definidas.

1.3 Critérios Específicos para Cálculo do Valor da Causa

O acórdão detalhou critérios técnicos para cálculo do valor da causa nos casos de competência. Se houver mais de um medicamento com o mesmo princípio ativo e sem indicação de um específico, considera-se, para fins de competência, o fármaco de menor preço na lista CMED (PMVG). Se o medicamento não tiver preço definido na CMED, utiliza-se o valor do tratamento anual efetivamente pleiteado, podendo o magistrado solicitar auxílio técnico da CMED em caso de impugnação desse valor. Em caso de cumulação de pedidos, soma-se o valor dos medicamentos não incorporados para verificar se alcança o patamar de 210 salários-mínimos, desconsiderando outros pedidos cumulados de natureza diversa. Essas diretrizes visam uniformizar a fixação do foro competente e evitar manobras que fragmentem demandas.

1.4 Legitimidade Passiva e Reorganização da Responsabilização Solidária

Em síntese, nas ações de medicamento não incorporado e de alto custo (≥210 SM), a União é ré necessária, atraindo a competência da Justiça Federal. Já nas demandas de medicamentos de custo inferior, Estados e/ou Municípios podem ser demandados no foro local, sem necessidade de inclusão prévia da União, embora haja previsão de posterior ressarcimento pela União e a possibilidade de chamamento para efetivação da decisão. Importante destacar que essa decisão não altera a responsabilização solidária dos entes pela saúde reconhecida em precedentes (Tema 793/STF), mas a reorganiza. O STF esclareceu expressamente que os parâmetros fixados no Tema 1234 passam a disciplinar exaustivamente as ações de medicamentos no SUS, estando a matéria excluída do escopo do Tema 793. Consolidou-se assim um novo paradigma cooperativo, focalizado na União para casos de alto custo, sem afastar a responsabilidade conjunta definida constitucionalmente (art. 23, II, CF), porém delineando como cada ente deve responder na prática.


2. Definição das Categorias de Medicamentos pelo STF

2.1 Conceituação de “Medicamentos Não Incorporados”

O acórdão estabeleceu conceituações precisas para distinguir as categorias de medicamentos envolvidas e aplicar corretamente os parâmetros jurídicos a cada uma. Consideram-se “medicamentos não incorporados” todos aqueles que não integram a política pública oficial do SUS, abrangendo medicamentos fora das listas/formulários ou protocolos clínicos do SUS para aquela indicação, medicamentos já previstos nos Protocolos Clínicos e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do SUS porém para finalidade diversa (uso off label), medicamentos sem registro sanitário na Anvisa, e medicamentos off label não amparados por PCDT nem constantes das listas de fornecimento regular.

Desse modo, fármacos prescritos fora da indicação aprovada (off label) são equiparados a não incorporados, salvo se já contemplados nas diretrizes oficiais para aquela doença, o que reforça a necessidade de avaliação técnica prévia para novas indicações. Por exclusão, medicamentos “incorporados” são aqueles incluídos nas listas e políticas públicas do SUS para determinada indicação (componentes básico, especializado ou estratégico), regidos pelos protocolos oficiais.

2.2 Tratamento Específico dos Medicamentos Sem Registro na Anvisa

Quanto aos medicamentos sem registro na Anvisa, o STF manteve o entendimento consolidado no Tema 500 da repercussão geral. Ações pleiteando fármacos não registrados continuam sendo de competência da Justiça Federal, devendo ser propostas exclusivamente contra a União. Nesses casos, além de se exigir a presença da União no polo passivo, devem ser observadas as condições específicas já fixadas no referido Tema 500, como a demonstração de que o medicamento possui registro em agências regulatórias estrangeiras de referência ou que há mora injustificada da Anvisa na análise de registro, e a inexistência de alternativa terapêutica nacional.

O acórdão ressalvou assim que a nova estrutura decidida no Tema 1234 não alterou as balizas próprias para fármacos sem registro, mantendo a competência da Justiça Federal em relação às ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na Anvisa, as quais deverão necessariamente ser propostas em face da União, observadas as especificidades já definidas no aludido tema. Em suma, medicamentos não incorporados englobam desde produtos de alto custo fora da lista até usos off label e fármacos não registrados, cada qual com tratamento jurídico específico.


3. Custeio e Ressarcimento Financeiro Entre Entes Federativos

3.1 União Arca Integralmente com Custos nas Ações de Competência Federal

O STF decidiu que as ações de fornecimento de medicamentos, seja incorporados, seja não incorporados, que tramitem na Justiça Federal terão seu custeio a cargo integral da União. Assim, nos casos em que a União for demandada (medicamentos não incorporados de alto custo), recai sobre ela o dever financeiro de prover o tratamento. Eventual participação de Estado ou Distrito Federal no polo passivo resultará em ressarcimento integral pela União dos dispêndios por eles suportados, via transferências fundo a fundo (do Fundo Nacional de Saúde para os Fundos Estaduais de Saúde – FNS → FES). O acórdão fixou prazo de até 90 dias para a efetivação desse ressarcimento, mediante ato do Ministério da Saúde pactuado na instância interfederativa competente (CIT – Comissão Intergestores Tripartite).

A tese estabelece que “as ações de fornecimento de medicamentos incorporados ou não incorporados, que se inserirem na competência da Justiça Federal, serão custeadas integralmente pela União, cabendo, em caso de haver condenação supletiva dos Estados e do Distrito Federal, o ressarcimento integral pela União, via repasses Fundo a Fundo (FNS ao FES) no prazo de até 90 dias”.

3.2 Regras de Custeio nas Ações em Trâmite na Justiça Estadual

O acórdão também contemplou a situação das ações que permanecerem na Justiça Estadual, ou seja, aquelas envolvendo medicamentos não incorporados de menor valor ou circunstâncias em que não se atingiu o limiar para deslocamento à Justiça Federal. Nesses casos, ainda que a União não integre inicialmente a lide, foi previsto um mecanismo de ressarcimento parcial aos entes subnacionais. Especificamente, condenações impostas a Estados ou Municípios em ações sobre medicamentos não incorporados terão 65% dos seus dispêndios ressarcidos pela União (via repasse fundo a fundo), quando o valor da causa for superior a 7 salários-mínimos e inferior a 210 salários-mínimos.

Trata-se de um critério de compartilhamento financeiro introduzido para aliviar os cofres estaduais/municipais em demandas de médio custo, mantendo ainda assim parte do ônus (35%) a cargo do ente local. O acórdão determinou igual prazo de até 90 dias para esses reembolsos, a ser regulamentado pelo Ministério da Saúde na CIT. Note-se que para causas de valor muito baixo (até 7 salários-mínimos), não houve previsão de ressarcimento federativo, presumivelmente por serem casos de menor impacto financeiro e vinculados ao componente básico da assistência farmacêutica local.

3.3 Situação Específica dos Medicamentos Oncológicos

Foi dada atenção particular ao financiamento das terapias oncológicas. Considerando o alto custo e a urgência inerentes a tratamentos contra o câncer, o STF estabeleceu uma regra de transição. Nas ações judiciais para fornecimento de medicamentos de tratamento oncológico ajuizadas antes de 10/06/2024, a União deverá ressarcir 80% do valor total desembolsado por Estados e Municípios. Esse reembolso retroativo independe do trânsito em julgado da decisão e deve ser implementado via Ministério da Saúde (instância tripartite) em até 90 dias.

Para ações oncológicas posteriores a 10/06/2024, o acórdão determinou que o novo regime de ressarcimento seja pactuado na CIT dentro do mesmo prazo (90 dias), sinalizando que futuramente poderão ser fixados percentuais ou critérios distintos para esses casos mais recentes. A Corte adotou assim um porcentual majorado de ajuda federal (80%) para aliviar imediatamente os entes subnacionais quanto a tratamentos de câncer já demandados judicialmente até aquela data, e delegou à coordenação tripartite a definição da política permanente dali em diante.

3.4 Medidas de Controle de Gastos e Preço dos Medicamentos

O STF impôs diretrizes rigorosas para evitar abusos de preços nas aquisições decorrentes de decisões judiciais. Ficou estabelecido que o juiz deve fixar, na decisão, que o custo do medicamento a ser fornecido seja limitado ao menor valor possível, seja ele o preço com desconto ofertado pelo fabricante durante eventual processo de incorporação na Conitec, seja o menor preço já praticado pela Administração em compras públicas equivalentes.

Deve-se adotar, portanto, o referencial mais baixo entre o preço proposto com desconto pelo laboratório ao pleitear a incorporação no SUS (se houver, considerando princípios como o venire contra factum proprium no caso de o laboratório exigir valor superior ao que ele próprio sugeriu ao SUS), ajustado pelos índices oficiais de reajuste da CMED, e o preço unitário já pago pelo poder público em aquisições do mesmo fármaco, se disponível. Essa determinação, alinhada à Recomendação 146/2023 do CNJ, busca garantir que a compra judicial não ocorra por valores superiores aos praticados no mercado público.

Ademais, o acórdão veda expressamente a realização de pagamento judicial direto a pessoas físicas ou jurídicas particulares. O valor não deve ser depositado em favor do autor da ação ou intermediários, mas sim operacionalizado pela via administrativa junto ao fornecedor, assegurando transparência e evitando desvirtuação da finalidade da tutela. Conforme consta do acórdão, “na determinação judicial de fornecimento do medicamento, o magistrado deverá estabelecer que o valor de venda do medicamento seja limitado ao preço com desconto, proposto no processo de incorporação na Conitec ou valor já praticado pelo ente em compra pública, aquele que seja identificado como menor valor. Sob nenhuma hipótese, poderá haver pagamento judicial às pessoas”.


4. Obrigações Administrativas Prévias ao Ajuizamento

4.1 Esgotamento da Via Administrativa como Pressuposto

O acórdão enfatiza a necessidade de esgotar (ou ao menos percorrer adequadamente) as instâncias administrativas de saúde antes da judicialização da demanda, como forma de racionalizar o acesso a medicamentos e permitir que o Poder Público avalie tecnicamente os pedidos. Ficou claro que o paciente deve primeiramente formular o requerimento do fármaco no âmbito do SUS, seja solicitando o medicamento na rede pública local conforme os fluxos ordinários, seja, quando for o caso de tecnologia não disponível, provocando a análise de incorporação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec). Somente após a negativa administrativa é que o Judiciário deve ser acionado, e mesmo assim para controlar a legalidade dessa negativa, não para substituir a avaliação técnico-administrativa.

4.2 Nulidade por Descumprimento do Procedimento Prévio

O STF condicionou a validade das decisões judiciais sobre medicamentos à consideração do ato administrativo prévio. Consignou-se que, “sob pena de nulidade do ato jurisdicional (art. 489, §1º, V e VI c/c art. 927, III, §1º, do CPC), o Poder Judiciário, ao apreciar pedido de concessão de medicamentos não incorporados, deverá obrigatoriamente analisar o ato administrativo da não incorporação pela Conitec e da negativa de fornecimento na via administrativa”.

Essa exigência legal (fundada nos dispositivos do CPC que tratam de fundamentação das decisões e observância de precedentes) significa que, caso o autor não tenha buscado administrativamente o medicamento ou a decisão judicial ignore completamente a resposta/omissão administrativa, a sentença será considerada viciada. Assim, o magistrado deve intimar a Administração Pública a se manifestar sobre o pedido e registrar sua eventual negativa antes de conceder qualquer tutela judicial.

4.3 Medida Prática Temporária para Justificativa Administrativa

O acórdão estabeleceu uma medida prática temporária: enquanto a plataforma nacional não estiver implementada, os juízes deverão oficiar a Administração para que justifique a recusa do medicamento na via administrativa, seguindo os fluxos acordados, viabilizando o controle judicial sobre o indeferimento. Em outras palavras, a decisão judicial deve ser precedida de um diálogo processual com a autoridade sanitária, que precisa apresentar formalmente os motivos pelos quais não forneceu o fármaco requerido. Isso permite ao Judiciário examinar se houve respeito aos critérios técnicos e às normas do SUS na negativa.


5. Análise Judicial e Controle do Ato de Indeferimento Administrativo

5.1 Limites da Atuação Judicial: Controle de Legalidade versus Mérito Administrativo

O STF delineou de forma rigorosa os limites e deveres da atuação judicial nas ações de medicamentos, fixando que o juiz não atua como instância técnica substitutiva, mas como controlador da legalidade da decisão administrativa. O acórdão explicita que essa análise judicial deve ser feita no âmbito do controle de legalidade, não de mérito administrativo.

Firmou-se que o Judiciário “não pode substituir a vontade do administrador, mas tão somente verificar se o ato administrativo específico daquele caso concreto está em conformidade com as balizas presentes na Constituição Federal, na legislação de regência e na política pública no SUS”. Cabe ao juiz conferir se a negativa do medicamento observou os parâmetros legais e constitucionais (como os princípios do SUS, os direitos fundamentais e as diretrizes técnicas estabelecidas em norma), por exemplo, se houve respeito aos critérios objetivos da Conitec, às portarias do Ministério da Saúde, à proporcionalidade e razoabilidade, mas sem adentrar no juízo de conveniência e oportunidade que é próprio da Administração.

5.2 Teoria dos Motivos Determinantes e Regularidade do Procedimento

A atuação judicial “restringe-se ao exame da regularidade do procedimento e da legalidade do ato de não incorporação e do ato administrativo questionado, à luz do controle de legalidade e da teoria dos motivos determinantes, não sendo possível incursão no mérito administrativo”. Em termos práticos, o juiz deve verificar se o processo administrativo seguiu o rito correto (por exemplo, se houve análise pela Conitec dentro do prazo, se o pedido foi apreciado por quem de direito) e se a decisão de negar o fármaco está motivada por razões legítimas e verdadeiras.

A referência à teoria dos motivos determinantes indica que, se a Administração alegar certos fundamentos para negar o medicamento (falta de eficácia comprovada, por exemplo), o juiz pode averiguar se tais fundamentos de fato existiam e eram verídicos. Caso se mostrem falsos, inconsistentes ou dissociados do interesse público, a decisão pode ser considerada ilegal. Não pode o Judiciário, contudo, substituir o juízo discricionário da Administração por sua própria avaliação de mérito técnico, salvo se identificar vícios na motivação ou na forma.

5.3 Cognição do Ato Administrativo Discricionário

Está ressalvada apenas a “cognição do ato administrativo discricionário” quanto à existência, veracidade e legitimidade dos motivos apontados (isto é, o controle da razoabilidade e da base fática da decisão), vinculando o ente público aos motivos por ele mesmo declinados. O STF impôs assim deferência às instâncias técnicas, sem abdicar do controle judicial. O juiz funciona como garantidor de que a negativa atendeu à lei, à ciência e aos direitos do paciente, mas não como perito que decide qual medicamento é melhor ou se determinado fármaco deveria ser fornecido independentemente da avaliação administrativa.


6. Encargos Probatórios das Partes: Medicina Baseada em Evidências

6.1 Ônus Probatório do Autor da Ação

O acórdão definiu obrigações precisas quanto à prova a ser produzida, especialmente reforçando o ônus do autor da ação (paciente) em demonstrar a necessidade e adequação do medicamento pleiteado. Ficou assentado que, tratando-se de fármaco não incorporado, “é do autor da ação o ônus de demonstrar, com fundamento na Medicina Baseada em Evidências, a segurança e a eficácia do fármaco, bem como a inexistência de substituto terapêutico incorporado pelo SUS”.

Esta passagem impõe três aspectos probatórios fundamentais ao demandante: comprovar a eficácia e a segurança do medicamento através de evidências clínicas robustas (estudos científicos, dados de efetividade) de que o tratamento funciona e é seguro para a condição em questão, comprovar a imprescindibilidade ou necessidade clínica, demonstrando que sem aquele medicamento o paciente ficará desassistido, e que não há alternativa terapêutica equivalente disponível no SUS, e apresentar laudo médico circunstanciado, indicando a condição de saúde, histórico de tratamentos fornecidos pelo SUS e justificando por que o medicamento pleiteado é indispensável.

6.2 Insuficiência da Receita Médica Isolada

O STF deixou claro que a receita médica isolada e alegações genéricas de necessidade não satisfazem o ônus probatório. Citando precedente específico (STA 175-AgR), consignou-se que “não basta a simples alegação de necessidade do medicamento, mesmo que acompanhada de relatório médico, sendo necessária a demonstração de que a opinião do profissional encontra respaldo em evidências científicas de alto nível, ou seja, unicamente ensaios clínicos randomizados, revisão sistemática ou meta-análise”.

Em outras palavras, além do parecer do médico assistente, deve-se mostrar que a indicação daquele fármaco para o caso do autor é validada pela comunidade científica através de estudos sérios (preferencialmente do mais alto grau de evidência: RCTs ou meta-análises). Essa exigência eleva o padrão probatório, buscando evitar concessões judiciais baseadas em terapias experimentais ou em mero apelo emocional. O julgador, a partir disso, somente deverá deferir o pedido se o autor comprovar evidências científicas consistentes da eficácia do tratamento, não bastando a boa-fé do médico ou a esperança do paciente.

6.3 Qualificação das Demandas e Prevenção da “Medicina de Jurisdição”

Embora o acórdão não tenha mencionado explicitamente o ônus probatório do ente público, implicitamente cabe ao Estado contestar quando houver, por exemplo, alternativa oferecida no SUS ou contraindicações. Contudo, o principal recado foi dirigido aos autores: a judicialização da saúde exige responsabilidade científica, de forma que o Judiciário não seja compelido a fornecer medicamentos sem comprovação ou sem esgotar opções já disponíveis no SUS. Essa orientação converge com a jurisprudência do STJ (Tema 106) e busca qualificar as demandas, privilegiando pedidos bem fundamentados e coibindo a chamada “medicina de jurisdição” sem base técnica.


7. Medidas Estruturantes: Plataforma Nacional, Prescrição e Monitoramento

7.1 Criação da Plataforma Nacional de Dispensa de Medicamentos

Reconhecendo que a judicialização da saúde é um fenômeno complexo e repetitivo, o STF, em colaboração com os entes federativos, adotou medidas estruturantes para organizar e monitorar as demandas de medicamentos. O ponto central foi a criação de uma Plataforma Nacional de Dispensa de Medicamentos. Ficou decidido que os Entes Federativos, em governança colaborativa com o Poder Judiciário, implementarão uma plataforma nacional que centralize todas as informações relativas aos pedidos administrativos e ações judiciais por medicamentos, permitindo fácil consulta e transparência ao cidadão.

A plataforma reunirá dados básicos de cada demanda (paciente, medicamento, CID, etc.) para possibilitar tanto a análise e resolução administrativa do pedido quanto o posterior controle judicial, evitando retrabalho e facilitando a visualização de casos similares. O acórdão estabelece que “os Entes Federativos, em governança colaborativa com o Poder Judiciário, implementarão uma plataforma nacional que centralize todas as informações relativas às demandas administrativas e judiciais de acesso a fármaco, de fácil consulta e informação pelo cidadão, na qual constarão dados básicos para possibilitar a análise e eventual resolução administrativa, além de posterior controle judicial”.

7.2 Porta de Entrada via Prescrições Eletrônicas Certificadas

A plataforma receberá as solicitações por meio de receitas médicas eletrônicas, devidamente assinadas digitalmente pelo profissional de saúde. Isso garante autenticidade e integridade das informações médicas inseridas. Ademais, permite o controle ético da prescrição: está previsto que as prescrições ficarão disponíveis para fiscalização posterior pelos conselhos profissionais, mediante ofício do ente federativo ao respectivo Conselho. Esse mecanismo inibe prescrições irresponsáveis, pois o médico sabe que poderá ser chamado a justificar tecnicamente a indicação do medicamento fora do protocolo.

7.3 Orientação dos Fluxos Diferenciados e Identificação de Responsabilidades

A plataforma orientará todos os atores do sistema público de saúde, criando fluxos de atendimento diferenciados conforme o tipo de solicitação (se o medicamento já é incorporado ou não). Em outras palavras, a plataforma encaminhará automaticamente o pedido para o trâmite correto: por exemplo, se for medicamento incorporado porém não fornecido localmente, seguirá um fluxo específico; se for não incorporado, disparará o fluxo de avaliação na esfera federal (Conitec) conforme acordado. Isso aumenta a eficiência da resposta administrativa e padroniza procedimentos, em consonância com os acordos interfederativos aprovados.

A plataforma deverá identificar, em cada caso, qual ente federativo é responsável pelo custeio e pelo fornecimento administrativo do medicamento, com base nas regras e fluxos definidos no acordo homologado. Ao registrar a demanda, o sistema indicará automaticamente se a obrigação primária é do Município, do Estado ou da União, conforme a classe do medicamento e os acordos vigentes, agilizando a tramitação. Ademais, o sistema permitirá o monitoramento dos pacientes beneficiários de decisões judiciais, concentrando os dados nacionalmente e os disponibilizando para consulta (respeitados os sigilos).

7.4 Monitoramento de Pacientes e Observância da LGPD

Pela simples busca do CPF do paciente, nome do medicamento ou CID, autoridades poderão verificar se aquele paciente já recebe algum medicamento por decisão judicial, evitando duplicidade de ações e possibilitando avaliação de resultados. Evidentemente, o acesso a esses dados será regido pela Lei Geral de Proteção de Dados e normas de privacidade, dado tratar-se de informações pessoais sensíveis.

A plataforma deverá identificar quem é o responsável pelo custeio e fornecimento administrativo entre os Entes Federativos, com base nas responsabilidades e fluxos definidos em autocomposição, além de possibilitar o monitoramento dos pacientes beneficiários de decisões judiciais, com permissão de consulta virtual dos dados pela simples consulta pelo CPF, nome de medicamento, CID, entre outros, com a observância da Lei Geral de Proteção de Dados.

7.5 Responsabilidade do Prescritor e Acompanhamento Clínico Contínuo

Uma inovação importante trata do acompanhamento terapêutico dos pacientes que obtiveram medicamentos judicialmente. Determinou-se que o serviço de saúde (público) onde atua o profissional que prescreveu o medicamento não incorporado deverá assumir a responsabilidade contínua pelo acompanhamento clínico do paciente, apresentando periodicamente relatórios atualizados sobre o estado de saúde e a evolução do tratamento.

Se um médico de determinado hospital receitou um remédio fora do rol do SUS e o paciente o obteve via decisão judicial, a mesma equipe médica/hospital deve segui-lo de perto, informando se o medicamento surtiu melhora, estabilização ou piora, e reportando qualquer mudança significativa no plano terapêutico. Isso cria um ciclo de retroalimentação: evita-se que o medicamento seja distribuído sem controle de resultados e permite que, caso não haja eficácia ou surjam efeitos adversos, a continuidade do fornecimento possa ser revista.

Essa responsabilização do prescritor (e de sua instituição) assegura maior qualidade e prudência nas indicações. O acórdão estabelece que “o serviço de saúde cujo profissional prescrever medicamento não incorporado ao SUS deverá assumir a responsabilidade contínua pelo acompanhamento clínico do paciente, apresentando, periodicamente, relatório atualizado do estado clínico do paciente, com informações detalhadas sobre o progresso do tratamento, incluindo melhorias, estabilizações ou deteriorações no estado de saúde do paciente, assim como qualquer mudança relevante no plano terapêutico”.

7.6 Governança e Desenvolvimento da Plataforma

O STF definiu a operacionalização inicial da plataforma sob a responsabilidade da equipe de TI do TRF da 4ª Região (Tribunal Regional Federal do Sul), com posterior transferência ao Conselho Nacional de Justiça para gestão em rede com os gestores do SUS (CIT). Essa previsão, aliada à comunicação determinada à Anvisa e ao próprio CNJ, demonstra o caráter interinstitucional e cooperativo da solução: Judiciário e Executivo (Saúde) trabalhando conjuntamente para implementar as melhorias estruturais.

As medidas estruturantes homologadas (Plataforma Nacional, integração de bases de dados, protocolos de prescrição eletrônica e monitoramento clínico contínuo) representam uma mudança de paradigma. Elas criam ferramentas para gerir a judicialização de forma sistêmica, em vez de caso a caso, tornando possível acompanhar resultados, padronizar decisões e até retroalimentar políticas públicas (por exemplo, fornecendo dados à Conitec sobre demandas frequentes de medicamentos não incorporados, ou identificando necessidades regionais). Tais medidas deverão ser implementadas gradualmente, sob supervisão do STF e da CIT, compondo um verdadeiro plano de governança judicial colaborativa na área da saúde.


8. Regime de Transição e Modulação de Efeitos

8.1 Modulação Temporal da Competência para Preservação da Segurança Jurídica

Dada a mudança significativa nas regras de competência e procedimento, o STF modulou os efeitos da decisão para preservar a segurança jurídica. Ficou decidido que a nova regra de competência (Justiça Federal para casos ≥210 SM) só se aplicará às ações ajuizadas após a publicação do acórdão de mérito no Diário de Justiça Eletrônico. Processos já em tramitação até a data da publicação não terão sua competência alterada, permanecendo onde se encontram (na Justiça Estadual, se era o caso), até o desfecho.

Desse modo, evitou-se a remessa em massa de ações antigas aos juízos federais, o que poderia atrasar tratamentos em curso e gerar conflitos. Inclusive, o STF vedou expressamente a suscitação de conflitos negativos de competência com base na nova tese em processos pretéritos. Assim, um juiz estadual não poderá declinar de ofício nem alegar incompetência invocando o Tema 1234 em ação iniciada antes da modulação, e vice-versa, garantindo estabilidade para os casos pendentes.

O acórdão estabelece que “somente haverá alteração [de competência] aos feitos que forem ajuizados após a publicação do resultado do julgamento de mérito no Diário de Justiça Eletrônico, afastando sua incidência sobre os processos em tramitação até o referido marco, sem possibilidade de suscitação de conflito negativo de competência a respeito dos processos anteriores ao referido marco”.

8.2 Assistência Jurídica dos Autores nas Ações Redistribuídas

Além da modulação temporal da competência, o STF previu medidas transitórias complementares para a fase de implementação das novidades. Uma delas diz respeito à assistência jurídica dos autores nas ações redistribuídas. Como algumas ações que tramitariam na Justiça Estadual passarão a ser propostas na Justiça Federal (competência da União), o acórdão tratou da atuação da Defensoria Pública.

Excepcionalmente, pelo prazo de 1 ano a contar da publicação da ata de julgamento, se houver casos novos em que o juízo estadual decline a competência para o federal e o autor era assistido pela Defensoria Pública Estadual (DPE), admite-se que o defensor estadual permaneça no caso até que a Defensoria Pública da União assuma ou caso a DPU não possa atuar (seja por inexistência de unidade na localidade ou por o autor não preencher critérios de renda da DPU). Evitou-se assim que autores vulneráveis fiquem sem representação na transição. Essa é uma cláusula de modulação subjetiva que reflete preocupação em garantir continuidade na defesa dos interesses do paciente durante a mudança de foro. Findo o prazo de um ano, espera-se que a DPU já tenha estrutura para absorver totalmente a nova demanda ou que acordos institucionais sejam firmados.

8.3 Medicamentos Oncológicos e Regras Transitórias Diferenciadas

Outra medida transitória refere-se aos medicamentos oncológicos, com regras de ressarcimento distintas para ações passadas e futuras (80% para pretéritas, definição posterior para novas). Essa diferenciação temporal também é parte do regime de transição, reconhecendo as dificuldades de implementar mudanças financeiras de imediato.

8.4 Condicionamento de Revisões dos Acordos à Homologação Judicial

O STF condicionou a eficácia plena de eventuais revisões nos acordos homologados à sua futura homologação judicial. Quaisquer alterações nos acordos interfederativos dependem de nova apreciação do Supremo para produzirem efeito. Enquanto isso não ocorrer (por consenso entre os entes federativos e aprovação da Corte), os acordos atuais permanecem “existentes, válidos e eficazes”. Essa cláusula de reserva de jurisdição também tem natureza de modulação, pois congela o conteúdo dos acordos até que se revisem sob supervisão do STF, impedindo mudanças unilaterais pelos gestores que frustrem a implementação padronizada.

O regime de transição estabelecido pelo STF assegura que a virada jurisprudencial seja implementada de forma gradual e coordenada, sem prejuízo aos processos em andamento e resguardando os assistidos. A competência nova vale apenas para o futuro, e vários mecanismos paliativos (manutenção de defensores, ressarcimentos retroativos específicos, necessidade de homologação de mudanças) foram inseridos para que a passagem ao novo modelo se dê com segurança jurídica e administrativa.


9. Dispositivo Final e Súmula Vinculante nº 60/2024

9.1 Negativa de Provimento Parcial e Homologação dos Acordos Interfederativos

No dispositivo (parte conclusiva) do acórdão, o Plenário do STF, em sessão plenária com repercussão geral reconhecida, negou provimento, em parte, ao recurso extraordinário do Estado de Santa Catarina. Não acolheu a pretensão do recorrente de afastar sua responsabilidade ou sua ilegitimidade, mas ao mesmo tempo homologou parcialmente os três acordos interfederativos celebrados entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios, com observações e adaptações feitas pela Corte. Os termos desses acordos (firmados em sede de Comissão Especial supervisionada pelo STF) foram então convertidos nas teses jurídicas de repercussão geral do Tema 1234.

9.2 Consolidação das Teses em Onze Itens Principais

O acórdão consolidou todas as decisões em onze itens principais (I a IX, mais subitens), que sintetizam as obrigações e critérios discutidos. A redação final dessas teses foi incorporada ao acórdão e servirá de orientação obrigatória para casos semelhantes em todo o Judiciário (CPC, art. 927, III). Para evitar quaisquer dúvidas interpretativas e dada a relevância da matéria, o STF tomou uma iniciativa inédita: aprovou a transformação dessas teses em uma Súmula Vinculante.

9.3 Súmula Vinculante nº 60/2024 e Força Obrigatória Nacional

A Súmula Vinculante nº 60, aprovada posteriormente em 20/09/2024, possui o seguinte enunciado: “O pedido e a análise administrativos de fármacos na rede pública de saúde, a judicialização do caso, bem ainda seus desdobramentos (administrativos e jurisdicionais), devem observar os termos dos 3 (três) acordos interfederativos (e seus fluxos) homologados pelo Supremo Tribunal Federal, em governança judicial colaborativa, no tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243)”.

Este verbete vinculante resume, em linguagem sintética, a essência do que foi decidido: tanto a esfera administrativa quanto a judicial, no que tange a fornecimento de medicamentos no SUS, devem seguir fielmente os parâmetros acordados e chancelados pelo STF no Tema 1234. Ao torná-lo súmula vinculante (nos termos do art. 103-A da CF), o STF conferiu força obrigatória nacional a essas diretrizes, vinculando não só os órgãos do Judiciário, mas também a Administração Pública direta e indireta, que não poderá descumprir o entendimento sedimentado.

9.4 Uniformidade e Estabilidade da Jurisprudência

Trata-se de medida para garantir a uniformidade e estabilidade da jurisprudência sobre direito à saúde, disciplinando de forma definitiva assuntos que antes geravam controvérsias e tratamentos díspares entre os entes. O acórdão do RE 1.366.243/SC (Tema 1234), complementado pelo julgamento simultâneo do Tema 6 (RE 566.471), representa um marco na judicialização da saúde no Brasil.

9.5 Definições Abrangentes do Novo Paradigma

A decisão define com minúcias quem julga e quem responde nas ações de medicamentos (competência federal em casos custosos, União arcando predominantemente com os gastos), quais condições o autor deve preencher (tentativa administrativa prévia, demonstração científica da necessidade), como o juiz deve agir (controle de legalidade do ato administrativo, consulta a órgãos técnicos quando cabível), e quais medidas estruturais serão adotadas para gerir coletivamente o problema (plataforma nacional, fluxos integrados, compartilhamento de informações e custos entre os entes).

9.6 Governança Colaborativa e Fundamentação Constitucional

Com a homologação, ainda que parcial e condicionada, dos acordos interfederativos negociados perante o STF, evidenciou-se uma estratégia de governança colaborativa fundamentada na Constituição (art. 196 e segs., direito à saúde e dever de cooperação entre entes). As justificativas jurídicas e constitucionais foram a competência comum em matéria de saúde (art. 23, II, CF) e a necessidade de eficiência, isonomia e sustentabilidade no cumprimento do dever estatal de garantir prestações de saúde (art. 196 CF), bem como o respeito ao pacto federativo na execução dessas políticas.

A Corte integrou todos esses princípios e, exercendo um papel de coordenação, apresentou uma solução vinculante que pretende conciliar o acesso universal à saúde com a racionalidade administrativa e fiscal.


Referências: Acórdão do RE 1.366.243/SC (Temática de repercussão geral – Tema 1234), publicado em 11/10/2024, especialmente os itens I a IX das teses fixadas, bem como a Súmula Vinculante n.º 60/2024 do STF dele derivada.