Análise técnica da ADI 5766: parâmetros constitucionais para honorários periciais no processo do trabalho

31 de outubro de 2025

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Introdução à ADI 5766 | Barbieri Advogados

Análise técnica da ADI 5766: parâmetros constitucionais para honorários periciais no processo do trabalho

I. Introdução

A Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5766, ajuizada pelo Procurador-Geral da República em 28 de agosto de 2017, questionou a constitucionalidade de dispositivos da Consolidação das Leis do Trabalho alterados pela Lei nº 13.467/2017. Especificamente, a ação impugnou trechos dos artigos 790-B, caput e §4º; 791-A, §4º; e 844, §2º da CLT, que tratam da responsabilidade pelo pagamento de honorários periciais e advocatícios sucumbenciais, bem como das consequências processuais da ausência do reclamante à audiência.

O julgamento pelo Tribunal Pleno do Supremo Tribunal Federal ocorreu em 20 de outubro de 2021, com relatoria originária do Ministro Roberto Barroso e redação do acórdão pelo Ministro Alexandre de Moraes. A composição do julgamento registrou votação de seis ministros pela procedência parcial, contra cinco pela improcedência ou procedência em menor extensão, evidenciando a complexidade da matéria constitucional em análise.

O presente estudo propõe-se a examinar tecnicamente os fundamentos jurídicos apresentados pelas diferentes correntes formadas no julgamento, a tese constitucional fixada e suas implicações para o sistema processual trabalhista. A análise será desenvolvida a partir do exame sistemático dos votos, considerando os argumentos de ordem constitucional, processual e de política judiciária apresentados pelos julgadores.

II. Antecedentes normativos

A sistemática de honorários periciais no processo do trabalho passou por significativa alteração com a promulgação da Lei nº 13.467/2017. Anteriormente, vigorava o entendimento consolidado na Súmula 457 do Tribunal Superior do Trabalho, segundo o qual a União respondia pelo pagamento dos honorários periciais quando a parte sucumbente fosse beneficiária da justiça gratuita.

A reforma trabalhista introduziu nova redação ao artigo 790-B da CLT, estabelecendo que “a responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita.” O parágrafo 4º do mesmo dispositivo condicionou a responsabilidade subsidiária da União à inexistência de créditos obtidos em juízo pelo beneficiário, ainda que em outro processo.

Paralelamente, o artigo 791-A, §4º, determinou que as obrigações decorrentes da sucumbência ficariam sob condição suspensiva de exigibilidade por dois anos, podendo ser executadas se o credor demonstrasse que o beneficiário deixou de existir a situação de insuficiência de recursos, com a ressalva: “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa.”

O artigo 844, §2º, estabeleceu que, na hipótese de ausência do reclamante à audiência, o pagamento das custas seria condição para nova demanda, “ainda que beneficiário da justiça gratuita”, salvo comprovação de que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável.

A exposição de motivos da Lei nº 13.467/2017 justificou tais alterações como medidas necessárias para “racionalizar o sistema de gratuidade” e “evitar demandas temerárias”, argumentando que o sistema anterior estimularia a litigância irresponsável.

III. Argumentos da inicial

O Procurador-Geral da República fundamentou a ação em violação aos artigos 5º, XXXV e LXXIV; 6º; e 7º da Constituição Federal, sustentando que os dispositivos impugnados criariam obstáculos inconstitucionais ao acesso à jurisdição trabalhista.

Quanto ao artigo 790-B, argumentou-se que a imposição de honorários periciais ao beneficiário da justiça gratuita violaria o direito à assistência jurídica integral. A presunção de perda da hipossuficiência pela obtenção de créditos judiciais desconsideraria a natureza alimentar das verbas trabalhistas.

Em relação ao artigo 791-A, §4º, a inicial apontou inconstitucionalidade na expressão que condiciona a exigibilidade de honorários à inexistência de créditos obtidos em juízo, estabelecendo presunção incompatível com a realidade social dos trabalhadores.

Sobre o artigo 844, §2º, sustentou-se que condicionar novo ajuizamento ao pagamento de custas criaria barreira desproporcional ao acesso à justiça.

Os pedidos foram: declaração de inconstitucionalidade da expressão “ainda que beneficiária da justiça gratuita” do caput do art. 790-B; do §4º integral do mesmo artigo; da expressão “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa” do §4º do art. 791-A; e da expressão “ainda que beneficiário da justiça gratuita” do §2º do art. 844.

Manifestaram-se como amici curiae, favoravelmente, a CUT, CGTB, CSB e ANAMATRA. Em sentido contrário, a CNT e CNA. A ANAMATRA apresentou dados demonstrando redução de 36% no ajuizamento de ações e abandono de 45% dos pedidos de insalubridade/periculosidade após a reforma.

IV. Posicionamentos no julgamento

4.1. Corrente majoritária

A corrente majoritária, formada por seis ministros, votou pela procedência parcial da ação. O Ministro Alexandre de Moraes fundamentou o posicionamento na incompatibilidade entre a presunção legal de capacidade econômica e os princípios constitucionais de acesso à justiça e assistência jurídica integral.

Segundo esta corrente, o artigo 5º, LXXIV, da Constituição Federal assegura assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, não podendo a lei ordinária estabelecer presunções que esvaziem tal garantia. A obtenção de créditos trabalhistas não implica automaticamente alteração na condição de hipossuficiência, considerando a natureza alimentar de tais verbas.

A maioria distinguiu a natureza dos honorários periciais daquela dos honorários advocatícios sucumbenciais. Enquanto estes decorrem da aplicação do princípio da causalidade, aqueles vinculam-se à necessidade de produção probatória determinada pelo juízo para esclarecimento da verdade processual.

A corrente majoritária manteve a constitucionalidade do artigo 844, §2º, por entender que a ausência injustificada à audiência configura ato incompatível com os deveres processuais de boa-fé e cooperação.

4.2. Corrente parcialmente divergente

O Ministro Gilmar Mendes, acompanhado por outros ministros em aspectos diversos, apresentou fundamentação convergente quanto à proteção ao hipossuficiente, mas divergente quanto à extensão da declaração de inconstitucionalidade.

Esta corrente argumentou pela necessidade de equilibrar a proteção ao trabalhador com a racionalização do sistema judiciário. Destacou-se preocupação com o uso indiscriminado de perícias desnecessárias e seu impacto no funcionamento da Justiça do Trabalho.

O posicionamento sustentou que algum grau de responsabilização processual seria compatível com a Constituição, desde que não inviabilizasse o acesso à justiça.

4.3. Votos pela procedência total

Os Ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski votaram pela procedência total dos pedidos. Esta corrente fundamentou-se na compreensão de que qualquer restrição à gratuidade judiciária para hipossuficientes violaria o núcleo essencial do direito fundamental de acesso à justiça.

A Ministra Rosa Weber destacou que, sendo a perícia em insalubridade e periculosidade obrigatória por força do artigo 195 da CLT, seria particularmente grave onerar o trabalhador com custos decorrentes de exigência legal.

V. Tese jurídica fixada

O Supremo Tribunal Federal fixou a seguinte tese: “É inconstitucional a legislação que presume a perda da condição de hipossuficiência econômica para efeito de aplicação do benefício de gratuidade de justiça, apenas em razão da apuração de créditos em favor do trabalhador em outra relação processual, dispensado o empregador do ônus processual de comprovar eventual modificação na capacidade econômica do beneficiário.”

A análise dos elementos componentes desta tese revela três aspectos fundamentais: vedação à presunção legal automática de alteração da condição econômica; reconhecimento de que créditos trabalhistas obtidos judicialmente não constituem prova de capacidade econômica; e atribuição ao empregador do ônus probatório quanto à alegada modificação na situação financeira do trabalhador.

O alcance objetivo da decisão abrange: a expressão “ainda que beneficiária da justiça gratuita” do caput do artigo 790-B; a integralidade do §4º do artigo 790-B; e a expressão “desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa” do §4º do artigo 791-A da CLT.

Quanto à modulação temporal, o Tribunal rejeitou os embargos de declaração da AGU que pleiteavam eficácia prospectiva. O acórdão dos embargos, julgados em 21/06/2022, manteve a eficácia retroativa da declaração de inconstitucionalidade.

VI. Aspectos processuais

A decisão em controle concentrado produz eficácia erga omnes e efeito vinculante, nos termos do artigo 102, §2º, da Constituição Federal. Os efeitos aplicam-se desde a entrada em vigor da Lei 13.467/2017, considerando a ausência de modulação temporal.

Os embargos de declaração opostos pela AGU foram rejeitados por unanimidade em 21/06/2022. O acórdão estabeleceu que não foram demonstradas razões de segurança jurídica ou excepcional interesse público que justificassem a modulação prevista no artigo 27 da Lei 9.868/1999.

Para processos pendentes, a decisão implica inaplicabilidade imediata das expressões declaradas inconstitucionais. Processos com trânsito em julgado poderão ser objeto de ação rescisória, observados os requisitos legais e prazo decadencial. Execuções em curso envolvendo cobrança de honorários periciais de beneficiários da justiça gratuita deverão ser adequadas.

A questão do direito intertemporal apresenta complexidade para situações em que honorários foram pagos entre novembro/2017 e outubro/2021. O STF não estabeleceu procedimento específico para tais casos.

VII. Repercussões jurisprudenciais

A decisão do STF impactou diretamente a aplicação da Súmula 457 do TST, que estabelece a responsabilidade da União pelo pagamento de honorários periciais quando o sucumbente for beneficiário da justiça gratuita. A tese fixada na ADI 5766 reforçou e ampliou o alcance desta súmula.

Após a decisão, os tribunais trabalhistas necessitaram adequar seus entendimentos aos parâmetros constitucionais estabelecidos. A principal mudança refere-se à impossibilidade de presumir perda da condição de hipossuficiência pela simples obtenção de créditos em outros processos.

A Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho expediu orientações para adequação dos procedimentos em primeiro grau, especialmente quanto à não exigência de pagamento de honorários periciais por beneficiários da justiça gratuita.

Questões ainda não totalmente pacificadas incluem: procedimento para eventual ressarcimento de valores pagos antes da decisão; aplicação da tese a honorários advocatícios contratuais; e extensão da proteção a pessoas jurídicas.

VIII. Análise comparativa

A distinção entre honorários periciais e advocatícios estabelecida pela decisão merece análise específica. Enquanto os honorários advocatícios decorrem da sucumbência e do princípio da causalidade, os honorários periciais vinculam-se à produção probatória necessária ao esclarecimento dos fatos.

Na Justiça Comum, o artigo 95, §3º, do CPC estabelece que a gratuidade abrange os honorários periciais, cabendo ao Estado o pagamento quando o beneficiário for sucumbente. Este modelo aproxima-se do estabelecido pelo STF para a Justiça do Trabalho.

O sistema processual civil prevê ainda mecanismo de antecipação de honorários periciais pelo Estado quando necessário. A Justiça do Trabalho carece de regulamentação similar, dependendo de dotações orçamentárias específicas.

No direito comparado, sistemas de tradição romano-germânica geralmente preveem mecanismos de assistência que abrangem custos periciais. O modelo alemão estabelece fundo específico para custeio. O sistema francês inclui honorários periciais na aide juridictionnelle. O modelo português prevê apoio judiciário abrangente.

Conclusão

A decisão do STF na ADI 5766 estabeleceu parâmetros constitucionais para honorários periciais no processo do trabalho. A declaração de inconstitucionalidade parcial do artigo 790-B da CLT fixou três premissas: vedação a presunções legais de perda de hipossuficiência; reconhecimento da natureza alimentar dos créditos trabalhistas; e atribuição ao empregador do ônus probatório sobre alteração econômica.

Os pontos decididos incluem a inconstitucionalidade de condicionar a gratuidade à inexistência de créditos judiciais e a impossibilidade de cobrar honorários periciais de beneficiários sem comprovação de mudança econômica. A distinção entre honorários periciais e advocatícios foi central na fundamentação.

Permanecem em aberto questões procedimentais sobre ressarcimento de valores pagos no período de vigência das normas inconstitucionais, necessidade de regulamentação complementar e extensão da proteção a situações análogas.

A efetivação dos parâmetros constitucionais demanda adequação administrativa e orçamentária do sistema trabalhista, além de possível intervenção legislativa para criação de mecanismos procedimentais que garantam o acesso à justiça e a eficiência na produção probatória.