A Ordem Econômica na Constituição Federal de 1988: Um Modelo Compósito e Socialmente Dirigido
1. Introdução: Compreendendo a Ordem Econômica Brasileira.
Caio Cesar da Silva Oliveira
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
Advogado inscrito na OAB sob o nº 132.362.
A Constituição Federal de 1988 estabelece um arcabouço normativo que transcende a mera organização política, delineando sua Ordem Econômica com características essencialmente sociais. Longe de ser um sistema puramente liberal ou estatista, o modelo constitucional brasileiro emerge como um arranjo compósito, fruto de intensos debates ideológicos e da busca por um equilíbrio entre a eficiência do mercado e a imperatividade da justiça social. Este documento se propõe a explorar a complexidade da Ordem Econômica na Carta Magna de 1988, analisando seus fundamentos, princípios e a dinâmica entre eles, bem como a constante interação entre o Direito Econômico Constitucional e a realidade social, na busca pelo estabelecimento de um panorama jurídico contemporâneo adequado para Empresários e Investidores.
A relevância do estudo reside na compreensão de que a Constituição Econômica não é estática; ela reflete as tensões e os valores de uma sociedade em constante evolução. Portanto, a interpretação e a aplicação de seus preceitos são essenciais para a concretização de um desenvolvimento nacional equilibrado e inclusivo. A análise aqui empreendida busca refletir as nuances e as contradições intrínsecas a esse modelo, reconhecendo que a Ordem Econômica Brasileira é, fundamentalmente, dirigente, que impõe ao Estado e à sociedade a responsabilidade de construir uma realidade econômica justa.
2. A Evolução Histórica da Constituição Econômica no Brasil.
A preocupação com o delineamento de uma Ordem Econômica no Brasil não é recente, remontando à Constituição de 1934. Inspirada pelo modelo de Weimar, essa Carta Magna foi pioneira ao fixar princípios para a economia e preceitos protetores do trabalhador, inaugurando um intervencionismo estatal. Esse papel se acentuou sob a Constituição de 1937, que, embora nominalmente corporativista, pavimentou o caminho para uma atuação estatal mais incisiva, impulsionada pelas crises econômicas globais e pela depreciação do café. A era Vargas, com a criação de empresas estatais e o controle sindical, demonstrou o potencial do Estado como agente transformador.
As Constituições subsequentes, como a de 1946 e a de 1967 (com a Emenda de 1969), mantiveram a aceitação do Capitalismo, mas com espaço considerável para a intervenção estatal, tanto direta, por meio de estatais, quanto indireta, pelos controles impostos à atividade privada. Esse período também evidenciou um dirigismo econômico onipresente, paradoxalmente, em nome da economia de mercado. A história constitucional brasileira revela, portanto, um padrão de intervenção estatal adaptável, moldado pelas necessidades econômicas e pelos anseios sociais (ou governamentais) de cada época.
A Constituição de 1988 surge nesse cenário de longa tradição intervencionista. Sua elaboração foi palco de intensos debates entre correntes socializantes e liberais/conservadoras. Enquanto grupos socializantes aspiravam a uma economia centralizada ou a um alargamento da esfera estatal, os liberais buscavam garantias para a liberdade econômica e a proteção contra a ingerência estatal. O resultado foi um texto de Inspiração Compósita, permeado por diferentes visões, que o torna suscetível a múltiplas interpretações. Essa complexidade intrínseca da Ordem Econômica pós-1988 é o ponto de partida para sua compreensão e efetivação, refletindo um modelo que se pretende dirigente e transformador.
3. Os Pilares da Ordem Econômica na Constituição de 1988.
A Ordem Econômica na Constituição de 1988 é estruturada por um conjunto de princípios e uma finalidade expressa: “assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da Justiça Social.” Este objetivo centraliza a dignidade da pessoa humana como alicerce e meta de toda a atividade econômica. O artigo 170, em seu caput e incisos, delineia as bases de um Sistema Econômico Brasileiro que busca equilibrar o dinamismo do mercado com imperativos sociais.
Os fundamentos da Ordem Econômica Brasileira incluem a valorização do trabalho humano e a Livre Iniciativa. É crucial notar que a livre iniciativa, nesse contexto, não é vista como uma expressão individualista desprovida de responsabilidade social, mas como um valor que deve servir ao bem comum. A Constituição, de forma deliberada, não hierarquiza a iniciativa privada acima da valorização do trabalho, conferindo-lhes um papel de complementaridade para a construção de uma sociedade mais justa.
Os princípios que orientam a Política Econômica e a atuação dos agentes incluem:
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Soberania Nacional: Reflete a autonomia do país na condução de sua economia, crucial para o Desenvolvimento Nacional.
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Propriedade Privada e sua Função Social: Garante o direito de propriedade, mas o relaciona ao atendimento de interesses coletivos, um ponto central na Constituição Econômica. A propriedade não é um fim em si, mas um meio para o desenvolvimento social.
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Livre Concorrência: Essencial para o dinamismo do mercado, este princípio visa a coibir abusos de poder econômico e garantir oportunidades.
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Defesa do Consumidor: Reconhece a vulnerabilidade do consumidor, impondo a proteção contra práticas abusivas e a promoção de relações de consumo equilibradas.
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Defesa do Meio Ambiente: Impõe a responsabilidade pela sustentabilidade, exigindo que a atividade econômica seja compatível com a preservação dos recursos naturais e do equilíbrio ecológico.
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Redução das Desigualdades Regionais e Sociais: Um objetivo explícito de Justiça Social, direcionando as políticas para diminuir as disparidades geográficas e de renda.
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Busca do Pleno Emprego: Enfatiza a importância da criação de oportunidades de trabalho, alinhando a Política Econômica a um ideal keynesiano de utilização plena dos fatores de produção.
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Tratamento Favorecido para as Empresas Brasileiras de Pequeno Porte: Reconhece a importância dessas empresas para a economia e para a geração de empregos, concedendo-lhes condições especiais.
Esses princípios, embora distintos, coexistem e se conformam mutuamente, revelando a natureza complexa e multifacetada da Ordem Econômica delineada pela Carta de 1988.
4. O Papel do Estado e a Intervenção na Ordem Econômica.
A Intervenção Estatal na Economia brasileira, conforme a Constituição de 1988, não é um fenômeno pontual, mas uma característica intrínseca do sistema. O Estado atua como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercendo funções de fiscalização, incentivo e planejamento. Este modelo rejeita o abstencionismo puro, reconhecendo a necessidade de uma atuação ativa para garantir a Justiça Social e o Desenvolvimento Nacional.
Historicamente, o intervencionismo se manifestou na criação de empresas estatais e no dirigismo econômico. A Constituição de 1988, embora tenha atenuado alguns aspectos do dirigismo anterior, mantém um papel robusto para o Estado. O artigo 174, por exemplo, estabelece que o planejamento é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Essa distinção é crucial para entender a natureza da intervenção: o Estado pode e deve planejar, incentivar e fiscalizar, mas o controle direto da economia pelo setor público ocorre apenas em casos excepcionais.
Isso significa que a criação de empresas estatais ou a atuação direta do Estado como empresário não é a regra, mas a exceção, exigindo justificativa legal robusta. No entanto, o conceito de “relevante interesse coletivo” é amplo e suscetível a interpretações, o que pode abrir margem para uma maior atuação estatal, conforme as necessidades da Política Econômica.
A regulação estatal se estende a diversos setores, visando a corrigir falhas de mercado, proteger bens jurídicos coletivos e promover os objetivos da Ordem Econômica. A criação de agências reguladoras e a edição de leis específicas são instrumentos dessa intervenção. Contudo, essa atuação não é ilimitada. Ela está balizada pelos próprios princípios constitucionais, como a Livre Iniciativa e a Livre Concorrência, que impõem limites à ação estatal, exigindo que a intervenção seja proporcional e não suprima o dinamismo da atividade privada sem justa causa.
5. Tensões e Harmonizações entre os Princípios Econômicos.
A natureza compósita da Constituição Econômica brasileira gera tensões inerentes entre seus diversos princípios, exigindo um constante exercício de harmonização. A dinâmica entre Propriedade Privada e Função Social da Propriedade é um exemplo clássico. Embora a Constituição garanta o direito à propriedade, ela impõe que este seja exercido de forma socialmente responsável. Isso significa que a propriedade não pode ser ociosa ou utilizada de forma prejudicial ao ambiente ou à sociedade, sob pena de sofrer limitações ou, em casos extremos, desapropriação. A jurisprudência tem consolidado a ideia de que a propriedade, especialmente dos bens de produção, não é apenas um direito, mas um poder-dever, ou seja, um direito que se justifica por sua utilidade social.
Outra tensão relevante reside no equilíbrio entre a Livre Iniciativa e a Intervenção Estatal na Economia. A Constituição promove a liberdade de empreender, mas também confere ao Estado o papel de regulador e planejador. Essa dualidade se resolve pela compreensão de que a intervenção deve ser subsidiária e direcionada para a correção de falhas de mercado, a proteção de direitos (como a Defesa do Consumidor e a Proteção Ambiental) e a promoção da Justiça Social. A liberdade econômica não autoriza abusos, e a regulação estatal visa a assegurar um ambiente de mercado justo e equilibrado, que não comprometa o Desenvolvimento Nacional.
A relação entre Desenvolvimento Nacional e Proteção Ambiental é outro campo de harmonização. A busca pelo crescimento econômico não pode ignorar os limites ecológicos do planeta. O modelo constitucional exige um Desenvolvimento Sustentável, que concilie as necessidades econômicas do presente com a preservação ambiental para as futuras gerações. Isso implica a adoção de tecnologias limpas, a gestão responsável dos recursos naturais e a internalização dos custos ambientais nas atividades produtivas.
Por fim, a Livre Concorrência e o Tratamento Favorecido para as Empresas de Pequeno Porte demonstram a flexibilidade da Constituição Econômica. Embora a concorrência seja um motor de eficiência, a Constituição reconhece que nem todos os agentes operam em pé de igualdade. As pequenas empresas, por sua importância na geração de empregos e na distribuição de renda, recebem tratamento diferenciado, como incentivos fiscais e desburocratização, para que possam competir de forma mais justa. Essa medida não visa a abolir a concorrência, mas a mitigar desigualdades estruturais, contribuindo para a Redução das Desigualdades Sociais.
Essas tensões não são meras contradições, mas características de um modelo que busca integrar diversas dimensões da vida social e econômica, refletindo uma visão complexa e multifacetada do Estado e do mercado. A Ordem Econômica na Constituição é um campo dinâmico de interpretação e aplicação, onde o objetivo maior é a concretização da dignidade humana em um cenário de prosperidade compartilhada.
6. A Aplicação Prática dos Princípios da Ordem Econômica.
A aplicação dos princípios da Ordem Econômica vai além do plano teórico, materializando-se em políticas públicas e no controle jurisdicional. A Constituição Econômica de 1988, ao estabelecer um modelo dirigente, impõe ao Estado o dever de criar instrumentos para a efetivação de seus objetivos. Isso se traduz em legislação infraconstitucional, como o Código de Defesa do Consumidor, que protege os interesses dos consumidores, e leis antitruste, que salvaguardam a Livre Concorrência.
O Direito Econômico Constitucional serve de fundamento para a atuação de órgãos reguladores e fiscalizadores. O CADE, por exemplo, garante a Livre Concorrência coibindo práticas anticompetitivas. Agências como ANATEL e ANEEL regulam setores estratégicos, equilibrando a Livre Iniciativa com o interesse público, especialmente em áreas de monopólio natural ou de relevante interesse coletivo. Essas instituições são cruciais para a concretização dos preceitos constitucionais no dia a dia da Economia Brasileira.
O controle de constitucionalidade desempenha um papel vital para assegurar que leis e atos administrativos que afetam a economia estejam em consonância com os princípios da Ordem Econômica. O Supremo Tribunal Federal, em sua jurisprudência, tem reiteradamente reafirmado a prevalência dos valores sociais e ambientais sobre interesses meramente econômicos, interpretando o direito de propriedade em sua dimensão de Função Social da Propriedade e a livre iniciativa em seus limites constitucionais. Casos de intervenção estatal em crises econômicas ou para proteção de setores estratégicos são constantemente avaliados à luz desses princípios.
A flexibilidade do modelo constitucional permite que a Política Econômica seja adaptada às contingências, mas sempre sob a égide dos direitos fundamentais e dos objetivos sociais. O parágrafo único do artigo 170, ao permitir o livre exercício de qualquer atividade econômica “salvo nos casos previstos em lei”, reforça a ideia de que a liberdade não é absoluta e pode ser regulada por razões de interesse público. Essa ressalva legal é a porta para a intervenção que se faz necessária para proteger o ambiente, o consumidor ou a própria estabilidade do sistema econômico.
A constante reinterpretação da Constituição Econômica é um processo dinâmico, influenciado pelas transformações sociais e pelos debates doutrinários. Os tribunais, ao aplicarem a Constituição, não apenas resolvem conflitos, mas também moldam a compreensão de como o Sistema Econômico Brasileiro deve operar para alcançar a Justiça Social e o Desenvolvimento Nacional de forma inclusiva e sustentável.
7. A Ordem Econômica como Fundamento do Direito Penal Econômico.
A Ordem Econômica Brasileira, tal como delineada pela Constituição de 1988, não apenas orienta a Política Econômica, mas também serve como pilar fundamental para a Responsabilização Penal Econômica. A criminalização de condutas que lesionam ou colocam em risco os bens jurídicos protegidos por essa ordem reflete a importância conferida pela Carta Magna a um funcionamento econômico justo e ético. O Direito Penal atua, nesse contexto, como a última fronteira de proteção para valores essenciais do Sistema Econômico Brasileiro.
Os Crimes contra a Ordem Econômica, previstos em legislação específica, têm como objetivo proteger bens jurídicos supraindividuais, como a Livre Concorrência, o equilíbrio das relações de consumo e a integridade do sistema financeiro nacional. Condutas como a formação de cartel, o abuso de poder econômico, a manipulação de mercados e a fraude fiscal são criminalizadas porque atentam contra a estrutura e a finalidade da Ordem Econômica, prejudicando não apenas indivíduos, mas a coletividade como um todo. A Constituição Econômica justifica a atuação repressiva do Estado para salvaguardar o interesse público no correto funcionamento do mercado.
A Defesa do Consumidor, outro pilar da Ordem Econômica, também encontra proteção na responsabilização Penal, através dos Crimes contra a Economia Popular. A legislação visa a proteger os consumidores de práticas abusivas que distorcem o mercado ou exploram sua vulnerabilidade a especulação e a venda de produtos adulterados. Essa intersecção entre a proteção da ordem econômica geral e a salvaguarda dos consumidores reflete a visão social da Constituição, que busca assegurar a dignidade humana nas relações de mercado.
É essencial que a tipificação e aplicação das leis penais econômicas respeitem os princípios constitucionais do direito penal, como a legalidade, a lesividade e a proporcionalidade. A complexidade das atividades econômicas exige uma descrição precisa das condutas delituosa para evitar a criminalização indevida ou arbitrária. Somente um conhecimento jurídico especializado poderá fornecer o pano de fundo interpretativo para distinguir a conduta lícita da ilícita, e a transgressão administrativa da infração penal, garantindo a segurança jurídica no ambiente de negócios e resguardando os interesses de Empresários e Investidores.
Considerações Finais: O Legado da Ordem Econômica de 1988.
A Ordem Econômica Brasileira, talhada na Constituição Federal de 1988, transcende a mera enunciação de regras, configurando um projeto de sociedade com profundas aspirações sociais. Sua natureza compósita, nascida de um “entrechoque” de forças ideológicas na Constituinte, reflete uma complexa teia de princípios que buscam harmonizar a eficiência do Capitalismo com os imperativos de Justiça Social. A valorização do trabalho humano e a Livre Iniciativa são os pilares, orientados para assegurar a todos uma existência digna, em um cenário de Desenvolvimento Nacional inclusivo e sustentável.
Em sua essência, a Ordem Econômica na Constituição de 1988 é um convite à ação, um mandato para que o Estado e a sociedade colaborem na construção de um Sistema Econômico Brasileiro que seja não apenas próspero, mas também justo e equitativo. As perspectivas futuras exigem a capacidade de adaptação aos desafios da globalização, da tecnologia e das crises ambientais, sempre com os olhos voltados para a primazia da dignidade humana.
