A Nova Hipótese de Justa Causa: Perda de Habilitação Profissional (Lei 13.467/2017)
A Nova Hipótese de Justa Causa: Perda de Habilitação Profissional (Lei 13.467/2017)
Análise Doutrinária e Jurisprudencial da Alínea “m” do Art. 482 da CLT
1. Introdução
A Lei 13.467/2017 (Reforma Trabalhista) introduziu significativas alterações no ordenamento juslaboral brasileiro, dentre as quais merece destaque a inclusão da alínea “m” no art. 482 da CLT. Esta nova hipótese de justa causa dispõe sobre a “perda da habilitação ou dos requisitos estabelecidos em lei para o exercício da profissão, em decorrência de conduta dolosa do empregado”.
A inovação legislativa busca atender demanda prática dos empregadores em situações específicas onde a manutenção do vínculo empregatício torna-se inviável devido à perda, pelo empregado, da capacidade jurídica para o exercício de sua função. Contudo, a aplicação do instituto tem gerado controvérsias doutrinárias e divergências jurisprudenciais que merecem análise detida.
2. Fundamentos Doutrinários
2.1. A Análise de Luciano Martinez
Luciano Martinez, em seu “Curso de Direito do Trabalho”, oferece a mais abrangente análise doutrinária sobre a nova hipótese. Segundo o autor, “por meio dessa norma a perda da habilitação ou de qualquer outro requisito estabelecido em lei para o exercício da profissão, desde que em decorrência de conduta dolosa do empregado, será motivo suficiente para a resolução contratual por inexecução faltosa.”
Martinez identifica dois exemplos paradigmáticos: o motorista que, “por ingestão intencional de bebida alcoólica, é apenado com a perda da habilitação para dirigir durante determinado período” e “o advogado-empregado que por ato de improbidade é suspenso pela OAB.”
O aspecto mais relevante da análise de Martinez reside no questionamento central que propõe: “qual seria a solução dada ao empregado que tivesse perdido a habilitação ou qualquer outro requisito estabelecido em lei para o exercício da profissão, mas em decorrência de conduta culposa?”
Sua resposta é categórica: “não se poderia falar, evidentemente, em despedida por justa causa, pois a perda ou a suspensão da habilitação teriam decorrido de conduta culposa do empregado, e não de conduta dolosa.”
Para essas hipóteses, Martinez propõe solução equilibrada: “o empregador estaria autorizado, depois de tentada a readaptação funcional em homenagem ao dever de acomodação razoável, a resilir o contrato por motivos de natureza técnica. A dispensa não seria arbitrária, porque existiria um motivo técnico a dar lastro à ruptura do contrato por iniciativa patronal.”
2.2. A Contribuição de Henrique Correia
Henrique Correia, em seu “Curso de Direito do Trabalho”, converge com Martinez ao enfatizar que “caso esse empregado venha a perder a habilitação ou o requisito legal exigido, por conduta dolosa, haverá hipótese de justa causa para a dispensa do trabalhador.”
Correia oferece exemplo específico: “motorista profissional para o transporte de passageiros, exige-se que o trabalhador possua habilitação para dirigir na categoria ‘D’, que se refere à condução de veículo cuja lotação exceda a 8 passageiros, excluindo o motorista. Se o trabalhador cometer infração de trânsito, por conduta dolosa, que ocasione a perda da habilitação, com a suspensão do direito de dirigir, poderá ser dispensado por justa causa.”
Relevante inovação de Correia reside na identificação de casos específicos onde a justa causa não se aplica, destacando-se: “caso a perda da habilitação e dos requisitos legais decorra de conduta culposa ou por força maior, a legislação não autoriza a dispensa por justa causa do empregado.” Ademais, “se o empregado perde a habilitação em razão de cumprimento de orientação de seu empregador, entendemos que a dispensa por justa causa não pode ser aplicada, pois o trabalhador apenas atuou seguindo a própria orientação da empresa por aplicação do princípio da boa-fé.”
Correia ainda recupera precedente jurisprudencial anterior à Reforma: a jurisprudência trabalhista já reconhecia que “configurava hipótese de desídia no desempenho das funções quando o empregado dirigia com CNH vencida há mais de 30 dias” (TRT-3 – RO: 15207 00784-2006-103-03-00-0).
3. Análise Jurisprudencial
3.1. Panorama Geral dos Tribunais Regionais do Trabalho
A aplicação da alínea “m” do art. 482 da CLT tem gerado debate considerável nos tribunais trabalhistas, revelando tendência de interpretação restritiva que corrobora, em grande medida, as análises doutrinárias de Martinez e Correia sobre a necessidade de rigorosa caracterização do elemento subjetivo.
3.2. Argumentos Favoráveis à Aplicação da Justa Causa
a) Requisitos Essenciais da Profissão
O TRT da 1ª Região, no processo 0100937-67.2022.5.01.0204, reconheceu que “a posse de habilitação válida é requisito essencial para o exercício de determinadas profissões, especialmente a de motorista”, validando a justa causa quando há “não renovação da habilitação, por negligência ou dolo do empregado.”
Similarmente, o TRT da 4ª Região, no processo 0020147-28.2021.5.04.0017, validou a justa causa quando “o empregado não consegue atender aos requisitos necessários para a habilitação profissional, como a obtenção de atestado de bons antecedentes.”
b) Caracterização da Conduta Dolosa
O TRT da 1ª Região, no processo 0101365-09.2019.5.01.0025, estabeleceu que “a caracterização da conduta dolosa do empregado é crucial”, exigindo que “a perda da habilitação decorra de uma ação intencional ou de negligência grave por parte do empregado.”
Interessante precedente encontra-se no TRT da 4ª Região, processo 0020488-65.2018.5.04.0015, onde se equiparou “conduta culposa gravíssima ao dolo para fins de aplicação da justa causa”, embora este mesmo acórdão tenha estabelecido a “vedação à dupla punição pelo mesmo fato.”
c) Inviabilidade da Continuidade Contratual
O TRT da 4ª Região, no processo 0020290-93.2023.5.04.0551, reconheceu “a justa causa como penalidade máxima para o empregado que pratica falta grave que inviabilize a continuidade da relação de emprego.”
No processo 0020408-13.2020.5.04.0733, o mesmo tribunal considerou válida a justa causa por “ausência de requisito para o exercício da profissão de motorista, devido ao término da validade da CNH e a pendência no exame toxicológico.”
3.3. Argumentos Desfavoráveis à Aplicação da Justa Causa
a) Necessidade Imperiosa de Comprovação do Dolo
A jurisprudência tem sido rigorosa quanto à exigência de comprovação do elemento subjetivo. O TRT da 4ª Região, no processo 0020930-03.2019.5.04.0401, estabeleceu precedente fundamental ao decidir que “a simples infração de trânsito ou a perda da habilitação não são suficientes para justificar a justa causa. É imprescindível a comprovação do dolo do empregado.”
Convergindo nesta linha, o TRT da 4ª Região, no processo 0020762-61.2020.5.04.0402, destacou que “a justa causa não se sustenta se não houver inércia ou conduta dolosa do empregado”, exigindo “prova inequívoca da falta grave cometida pelo empregado.”
O TRT da 1ª Região, no processo 0100090-39.2018.5.01.0064, consolidou entendimento no sentido de que “a ausência de comprovação do dolo do empregado é um fator determinante para a reversão da justa causa.”
b) Interpretação Restritiva do Instituto
Os tribunais têm aplicado interpretação restritiva ao instituto da justa causa, considerando-a “a penalidade máxima imposta ao empregado”, conforme decidido pelo TRT da 1ª Região no processo 0102576-75.2016.5.01.0481, que exige “prova robusta da falta cometida” e determina que “a interpretação do artigo 482 da CLT deve ser restritiva, aplicando-se somente em casos de comprovada gravidade da conduta do empregado.”
c) Distinção entre Suspensão Temporária e Perda Definitiva
Precedente relevante encontra-se no TRT da 1ª Região, processo 0100063-03.2020.5.01.0059, que estabeleceu distinção fundamental: “A suspensão temporária da habilitação, por medida cautelar penal, por exemplo, não se equipara à ‘perda’ da habilitação exigida pelo artigo 482, alínea ‘m’, da CLT.”
O mesmo acórdão determinou que “a justa causa somente se justifica em casos de perda definitiva da habilitação decorrente de conduta dolosa do empregado”, aplicando o “princípio da presunção de inocência” para afastar a justa causa em casos de “medidas cautelares penais que impeçam o empregado de exercer sua função.”
3.4. Critérios Jurisprudenciais Consolidados
a) Requisitos Procedimentais
A jurisprudência tem exigido observância rigorosa dos requisitos clássicos da justa causa. O TRT da 1ª Região, no processo 0102576-75.2016.5.01.0481, estabeleceu que “a aplicação da justa causa exige a observância de requisitos como a imediatidade da punição, a proporcionalidade entre a falta e a sanção, e a ausência de perdão tácito ou expresso.”
O mesmo tribunal determinou que “o ônus da prova da justa causa é do empregador, que deve comprovar a ocorrência da falta grave e o dolo do empregado.”
b) Análise da Proporcionalidade
O TRT da 4ª Região, no processo 0020290-93.2023.5.04.0551, estabeleceu que “a análise da conduta do empregado deve considerar a gravidade da falta, a imediatidade da punição e a proporcionalidade da penalidade aplicada.”
Ademais, o TRT da 4ª Região, no processo 0020930-03.2019.5.04.0401, reconheceu que “a confiança entre as partes é um elemento essencial à manutenção do contrato de trabalho, e a quebra dessa confiança pode justificar a justa causa, desde que comprovada a conduta dolosa do empregado.”
4. Convergência Doutrinária e Jurisprudencial
A análise da jurisprudência emergente confirma, em substancial medida, os posicionamentos doutrinários de Martinez e Correia. A convergência manifesta-se especialmente em três aspectos fundamentais:
a) Centralidade do Elemento Subjetivo: Tanto a doutrina quanto a jurisprudência reconhecem a imprescindibilidade da comprovação do dolo, afastando a aplicação da justa causa em casos de mera conduta culposa.
b) Interpretação Restritiva: Os tribunais têm adotado interpretação restritiva do instituto, alinhando-se com a tradição jurisprudencial brasileira de considerar a justa causa como medida excepcional.
c) Proteção contra Arbitrariedades: A exigência jurisprudencial de prova robusta da falta grave converge com a preocupação doutrinária de proteção do empregado contra dispensas arbitrárias.
5. Questões Controvertidas e Perspectivas
5.1. Critérios para Caracterização do Dolo
Permanece em aberto a definição de critérios precisos para caracterização do dolo. A jurisprudência tem analisado caso a caso, considerando elementos como intencionalidade da conduta, gravidade da infração e consequências para o exercício profissional.
5.2. Extensão do Conceito de “Requisitos Estabelecidos em Lei”
A amplitude da expressão “requisitos estabelecidos em lei” ainda carece de delimitação jurisprudencial mais precisa, especialmente quanto à distinção entre exigências legais e regulamentares.
5.3. Procedimentos de Readaptação Funcional
A proposta de Martinez sobre o dever de acomodação razoável através da readaptação funcional ainda não encontrou desenvolvimento jurisprudencial específico, representando campo fértil para futuras construções pretorianas.
6. Orientações Práticas
6.1. Para Empregadores
Com base na convergência doutrinária e jurisprudencial analisada, recomenda-se:
Documentação rigorosa da perda da habilitação através de fontes oficiais
Comprovação inequívoca da conduta dolosa mediante evidências concretas da intencionalidade
Observância dos requisitos clássicos da justa causa (imediatidade, proporcionalidade, ausência de perdão)
Tentativa de readaptação funcional em casos duvidosos quanto ao elemento subjetivo
6.2. Para a Defesa dos Empregados
A estratégia defensiva deve focar:
Questionamento rigoroso da caracterização do dolo mediante demonstração da natureza culposa da conduta
Invocação do princípio da presunção de inocência em casos de medidas cautelares
Exigência de cumprimento do ônus probatório pelo empregador
Valorização de circunstâncias atenuantes que afastem a configuração do elemento subjetivo
7. Conclusão
A análise da alínea “m” do art. 482 da CLT revela instituto de aplicação restritiva, cuja eficácia depende da rigorosa observância dos elementos constitutivos, especialmente a comprovação da conduta dolosa do empregado.
A convergência entre os posicionamentos doutrinários de Martinez e Correia, confirmada pela jurisprudência emergente dos Tribunais Regionais do Trabalho, aponta para consolidação de interpretação que equilibra a proteção dos interesses empresariais legítimos com a salvaguarda dos direitos fundamentais dos trabalhadores.
A distinção fundamental entre condutas dolosas e culposas, proposta pela doutrina e referendada pelos tribunais, oferece critério seguro para aplicação prática do instituto, evitando arbitrariedades e preservando a função social do Direito do Trabalho.
As questões ainda controvertidas – especialmente os critérios para caracterização do dolo e a extensão da readaptação funcional – demandam desenvolvimento jurisprudencial futuro, possivelmente culminando em orientação sumulada do Tribunal Superior do Trabalho.

