Rol da ANS e Reajustes Abusivos: A Proteção Integral dos Direitos dos Usuários de Planos de Saúde
Por Dr. Luiz Felipe Medeiros Silveira da Costa
Barbieri Advogados
A defesa dos direitos dos usuários de planos de saúde no Brasil contemporâneo apresenta-se como um dos campos mais sensíveis e determinantes do direito da saúde, abrangendo não apenas questões relacionadas à cobertura assistencial, mas também práticas abusivas relacionadas aos reajustes contratuais. Esta complexa matéria toca diretamente o núcleo dos direitos fundamentais constitucionalmente protegidos, especialmente o direito à vida, à saúde e à dignidade da pessoa humana. Para milhões de brasileiros que dependem de seus planos de saúde para garantir acesso a tratamentos médicos essenciais e condições contratuais justas, as interpretações jurídicas sobre o rol da ANS e os critérios de reajuste podem significar literalmente a diferença entre a vida e a morte, bem como entre a viabilidade ou inviabilidade de manutenção da assistência médica.
A Evolução Histórica do Rol da ANS: Do Caráter Exemplificativo à Taxatividade
Durante mais de duas décadas, o sistema jurídico brasileiro consolidou entendimento favorável aos usuários, reconhecendo o caráter exemplificativo do Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde Suplementar (REPS) da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Essa interpretação, construída sobre sólidos fundamentos constitucionais e infraconstitucionais, garantia que médicos e pacientes mantivessem autonomia para escolher os tratamentos mais adequados para cada caso específico. O rol funcionava como piso mínimo de cobertura, não como teto máximo, permitindo que inovações médicas, medicamentos de última geração e procedimentos não contemplados na lista oficial fossem acessados pelos usuários, desde que houvesse indicação médica fundamentada e evidências científicas de eficácia.
Essa jurisprudência consolidada refletia compreensão madura sobre a natureza evolutiva da medicina e a impossibilidade de listas burocráticas acompanharem o ritmo acelerado dos avanços científicos. Reconhecia também que cada paciente é único, com características genéticas, histórico médico e necessidades específicas que demandam tratamentos personalizados, muitas vezes não previstos em protocolos padronizados.
Paralelamente a essa evolução interpretativa, desenvolveu-se também um sistema de proteção contra práticas abusivas relacionadas aos reajustes contratuais. Conforme estabelece o artigo 16, VII, da Lei nº 9.656/98, existem três modalidades de contratação de planos de saúde: individual ou familiar, coletivo empresarial, e coletivo por adesão. A definição precisa de cada modalidade se encontra regulamentada na Resolução Normativa nº 557, de 14 de dezembro de 2022, da ANS. Esta classificação é fundamental porque cada modalidade possui regras específicas de reajuste, sendo os planos individuais/familiares aqueles com maior proteção regulatória.
A Ruptura de 2022: Quando a Burocracia Ameaçou Vidas e Bolsos
Em junho de 2022, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça proferiu decisão que abalou profundamente as estruturas da saúde suplementar brasileira. Ao julgar recursos representativos da controvérsia, o tribunal estabeleceu que o rol da ANS deveria ser interpretado como taxativo, limitando drasticamente o acesso dos usuários a tratamentos inovadores e personalizados. Essa decisão representou ruptura com décadas de jurisprudência consolidada e gerou impactos imediatos devastadores para milhares de brasileiros.
A interpretação taxativa criou cenário dramático onde usuários, principalmente, crianças portadoras de doenças raras, perderam acesso a tratamentos essenciais, mesmo quando estes representavam a única esperança de sobrevivência ou qualidade de vida.
Este período de incerteza jurisprudencial coincidiu com crescentes preocupações sobre práticas abusivas das operadoras em relação aos reajustes contratuais, já que mobilizações sociais – as quais falaremos no tópico a seguir – foram fundamentais, para que a ANS inserisse os tratamentos projetados às crianças com transtornos globais no rol taxativo, tornasse-o ilimitado e sob indicação soberana e exclusiva do médico assistente. A toda evidência, a respectiva regulamentação aumentou o custo do serviço para os planos de saúde, o que acabou resultando em aumentos desenfreados, a partir de reajuste abusivos, os quais não seguem os parâmetros regulamentados pela ANS.
É fundamental destacar que a jurisprudência consolidada do Superior Tribunal de Justiça reconhece a possibilidade excepcional de que contratos formalmente classificados como coletivos ou empresariais, mas que possuam número diminuto de participantes, sejam tratados juridicamente como planos individuais ou familiares. Esta situação decorre do que a doutrina e jurisprudência denominam “falsa coletivização”, prática pela qual operadoras impõem aos consumidores a assinatura de contratos coletivos – sujeitos a menor rigor no controle de reajustes pela ANS – quando as características da relação contratual evidenciam natureza típica de contratos individuais ou familiares.
O STJ, consciente dos impactos que uma interpretação absolutamente restritiva poderia causar, estabeleceu exceções para mitigação do rol taxativo que, na prática, mostraram-se extremamente limitadas e de difícil aplicação. Os critérios cumulativos exigidos são excessivamente rigorosos: comprovação de inexistência de substituto terapêutico ou esgotamento dos procedimentos do rol da ANS; e inexistência de deferimento expresso da ANS e comprovação da eficácia à luz da medicina baseada em evidências ou existência de recomendações de órgãos técnicos de renome nacional e estrangeiros.
A Mobilização Social e a Resposta Democrática
A reação da sociedade brasileira à decisão do STJ foi imediata e contundente. Associações de pacientes, entidades médicas, organizações de defesa do consumidor e escritórios de advocacia especializados se mobilizaram em campanha nacional pela reversão da interpretação taxativa. Casos dramáticos ganharam destaque na mídia, sensibilizando a opinião pública e demonstrando as graves consequências práticas da nova interpretação.
A mobilização resultou na tramitação acelerada do Projeto de Lei 2.033/2022 no Congresso Nacional, aprovado em tempo recorde – apenas três meses – demonstrando excepcional capacidade da democracia brasileira de responder rapidamente a demandas sociais legítimas. O projeto contou com participação social intensa, incluindo audiências públicas lotadas, manifestações de entidades representativas e relatos emocionantes de pacientes que tiveram tratamentos suspensos.
Valendo realçar também os esforços de associações que representam crianças atípicas, que conseguiram fazer a ANS aprovar poucos dias depois do julgamento do STJ, a RN º 539, de 23 de junho de 2022, que incluiu no rol taxativo e tornou obrigatória a cobertura de qualquer tratamento indicado pelo médico assistente, bem como a RN 541, de 11 de julho de 2022, que tornou o número de sessões ilimitadas. Evidentemente que esses dois importantes regulamentos impactaram diretamente nos reajustes dos planos de saúde, muitos deles abusivos.
A Lei 14.454/2022: Marco da Proteção Integral dos Direitos dos Usuários
Em 21 de setembro de 2022, foi sancionada a Lei 14.454/2022, que alterou a Lei 9.656/98 para estabelecer legalmente outras hipóteses de mitigação do rol taxativo. A nova legislação representa vitória histórica dos direitos dos consumidores e marco na proteção do direito fundamental à saúde no Brasil.
A lei estabeleceu definiu três critérios alternativos – não cumulativos – para que procedimentos fora do rol sejam cobertos obrigatoriamente: eficácia baseada em evidências científicas à luz das ciências da saúde; recomendação pela Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec); ou recomendação por pelo menos um órgão de avaliação de tecnologias em saúde com renome internacional.
Esses critérios representam equilíbrio inteligente entre a necessidade de controle de custos pelas operadoras e a garantia de acesso a tratamentos adequados pelos usuários. Permitem que a medicina evolua naturalmente, sem as amarras burocráticas que impediam o acesso a inovações terapêuticas. Reconhecem também a expertise médica como elemento central na escolha dos tratamentos mais adequados para cada paciente.
Proteção Contra Reajustes Abusivos: Complemento Essencial à Cobertura Adequada
A proteção dos direitos dos usuários de planos de saúde não se esgota na garantia de cobertura adequada, estendendo-se necessariamente às práticas relacionadas aos reajustes contratuais. Os contratos de planos de saúde de natureza individual/familiar estão sujeitos exclusivamente a duas modalidades de reajuste: por faixa etária e os anuais conforme índices estabelecidos pela ANS.
Reajustes por Faixa Etária: Solidariedade Intergeracional
No que concerne aos reajustes por faixa etária, a disciplina se encontra constituída na Resolução Normativa 563/22 da ANS, que estabelece balizas fundamentais para coibir abusos. A regulamentação determina a obrigatoriedade de haver dez faixas etárias, compreendendo o período do zero aos cinquenta e nove anos de idade. Particularmente relevante é a disposição contida no artigo 3º da resolução, que estabelece que a variação acumulada entre a sétima e a décima faixas não pode ser superior à variação acumulada entre a primeira e a sétima faixas.
Este dispositivo visa assegurar conformidade com o §3º, artigo 15, do Estatuto do Idoso, implementando o que a doutrina especializada denomina “solidariedade intergeracional”. O princípio da proporcionalidade entre as variações acumuladas tem por objetivo mitigar o impacto financeiro sobre pessoas de maior idade, que naturalmente utilizam os serviços de assistência à saúde com maior frequência, elevando a taxa de sinistralidade.
É notável que o sistema de proporcionalidade do reajuste por faixa etária protege expressamente os idosos – pessoas acima de 59 anos – da incidência de variação acumulada de índices, em estrita observância ao Estatuto do Idoso, que veda cobrança diferenciada em razão da idade. Esta proteção encontra respaldo na decisão do Supremo Tribunal Federal na ADI 1931, que declarou inconstitucional o artigo 35-E, I, criado pela Medida Provisória nº 1.665/98, que pretendia revogar o parágrafo único do artigo 15 da Lei dos Planos de Saúde, dispositivo que assegura proteção aos idosos contra variações abusivas de reajustes.
Reajustes Anuais: Controle Técnico e Limitações
A segunda modalidade de reajuste permitida refere-se aos aumentos anuais segundo índices divulgados pela ANS, regra expressamente prevista nos §§3º e 4º do artigo 17 da Lei dos Planos de Saúde, regulamentada pela Resolução Normativa 512, de 31 de março, da ANS. O Superior Tribunal de Justiça consolidou entendimento no sentido da possibilidade de revisão judicial de reajustes que superem os índices estabelecidos pela agência reguladora.
A ANS desenvolve metodologia técnica para estabelecimento dos percentuais de reajuste, realizando reuniões e audiências públicas periódicas para revisão técnica de preços dos planos de saúde individuais. Recentemente, a agência definiu limitador de 6,91% para os reajustes anuais. Conforme estabelece a Resolução Normativa nº 565, de 16 de dezembro de 2022, mesmo contratos que não contenham expressa previsão dos índices de correção ficam limitados aos percentuais da ANS, desde que tal limitação seja mais benéfica ao consumidor, em conformidade com o artigo 47 do Código de Defesa do Consumidor.
Os critérios para estabelecimento dos reajustes encontram-se regulamentados na Resolução Normativa nº 441, de 19 de dezembro de 2018, envolvendo cálculo atuarial complexo baseado em ponderações entre índices de despesas assistenciais, fatores de ganho de eficiência, receita por faixa etária e observação dos índices de preços ao consumidor amplo (IPCA-E).
Direitos dos Consumidores e Reparação Integral de Danos
O descumprimento das regras de cobertura ou de reajuste configura prática abusiva passível de questionamento judicial. Os consumidores beneficiários têm direito à revisão quando não observadas as regras de cobertura estabelecidas pela Lei 14.454/2022, quando não respeitada a proporcionalidade entre faixas etárias nos reajustes por idade, ou quando os aumentos anuais superarem os índices estipulados pela ANS.
Comprovada a abusividade das práticas implementadas, seja em relação à cobertura ou aos reajustes, o consumidor tem direito não apenas à adequação dos procedimentos ou percentuais, mas ao ressarcimento integral dos valores pagos em excesso ou dos danos decorrentes da negativa de cobertura. Para identificação de práticas abusivas, é essencial o exame detalhado do contrato, especialmente das estipulações sobre coberturas, faixas etárias e critérios de reajuste.
Os consumidores devem manter vigilância particular contra a “falsa coletivização”, prática pela qual operadoras impõem adesão a planos coletivos – com reajustes menos controlados e coberturas potencialmente mais restritivas – a grupos diminutos de pessoas, como famílias de três ou quatro membros que aderem conjuntamente ao plano.
Estratégias Jurídicas para Defesa Eficaz dos Usuários
A defesa eficaz dos direitos dos usuários de planos de saúde exige advocacia altamente especializada que combine expertise em direito da saúde, conhecimento médico básico, domínio das regulamentações da ANS e sensibilidade para lidar com situações que envolvem vidas humanas em risco e questões econômicas sensíveis.
A abordagem deve ser sempre multidisciplinar, combinando aspectos jurídicos, médicos e atuariais para construir casos sólidos e persuasivos. É fundamental realizar análise preliminar minuciosa que contemple tanto a avaliação da documentação médica quanto a verificação dos critérios de reajuste aplicados, incluindo análise contratual detalhada e fundamentação legal robusta.
Sempre que possível, deve-se buscar resolver conflitos antes de recorrer ao Poder Judiciário, através de notificações extrajudiciais qualificadas e mediação especializada. Quando necessário, utilizam-se tutelas de urgência para proteger vidas em situações críticas ou para suspender cobranças abusivas, construindo petições iniciais persuasivas com estrutura narrativa envolvente, fundamentação jurídica sólida e argumentação técnica especializada.
A estratégia probatória deve incluir documentação médica completa, análises atuariais quando aplicável, perícia médica especializada quando necessário e prova testemunhal qualificada. É fundamental desenvolver também expertise em recursos, permitindo reverter decisões desfavoráveis e levar questões importantes aos tribunais superiores quando necessário.
O Compromisso Contínuo com a Defesa dos Direitos Fundamentais
A Lei 14.454/2022 e o sistema de proteção contra reajustes abusivos representam vitórias significativas, mas a defesa dos direitos dos usuários de planos de saúde é luta contínua que exige vigilância constante. As operadoras ainda tentam resistir à aplicação plena das regras através de interpretações restritivas, demoras administrativas estratégicas e exigências desproporcionais de documentação.
A proteção efetiva dos direitos dos usuários de planos de saúde demanda abordagem integral que contemple tanto as questões de cobertura quanto as práticas abusivas relacionadas aos reajustes contratuais. A atuação especializada em ambas as frentes é essencial para garantir que os consumidores tenham acesso não apenas aos tratamentos adequados, mas também a condições contratuais justas e equilibradas.
A saúde é direito fundamental que não pode ser limitado por considerações meramente econômicas ou burocráticas. Cada vitória judicial, cada precedente favorável, cada caso bem-sucedido contribui para a construção de uma jurisprudência mais justa e humanitária. A Lei 14.454/2022 e o sistema de proteção contra reajustes abusivos marcam o início de nova era na saúde suplementar brasileira, mas sua consolidação depende da atuação incansável de advogados especializados e do compromisso contínuo com a defesa dos direitos fundamentais.
Nossa missão permanece clara: garantir que cada brasileiro tenha acesso ao melhor tratamento disponível, conforme indicação médica qualificada, em condições contratuais justas e equilibradas, independentemente de limitações administrativas impostas pelas operadoras de planos de saúde. Porque quando se trata de saúde e vida, não pode haver meio-termo na defesa da dignidade humana e dos direitos constitucionalmente protegidos.